Bruno Andrade
No início dos anos 1970, os Estados Unidos começaram a receber as primeiras respostas negativas à efervescência cultural que se deu na década anterior. Após as aberturas políticas e libertárias que se estabeleceram como força motriz da sociedade civil organizada – além de manifestações políticas profícuas e históricas –, o país começou a enfrentar uma diminuição do interesse público nas políticas liberais e de contracultura. Na esteira, ainda estava por vir a quebra da coletividade e do bem comum que nortearam os ideais hippies anos antes. O neoliberalismo ganhou força popular, Richard Nixon chegou à presidência (1969-1974) e o culto da imagem se estabeleceu – algo que Guy Debord já alertava em A Sociedade do Espetáculo (1967). Mas ao contrário do que se pode imaginar, quando nada pode acontecer, tudo é possível de novo.
Esse é o caótico cenário cultural de Licorice Pizza, 9º filme do diretor Paul Thomas Anderson (PTA), estrelado por Cooper Hoffman e Alana Haim, ambos estreantes em longa-metragens. Lançado nos EUA em novembro de 2021, a trama traz Gary Valentine (Hoffman), um jovem ator de 15 anos com verve de pequeno empreendedor, e Alana Kane (Haim), uma mulher de 25 anos perdida sobre o futuro, vivendo em meio aos conflitos sociais – e geracionais – de 1973. A obra concorre no Oscar 2022 como Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original – categoria em que é um dos favoritos à estatueta.
Licorice Pizza começa com uma pista falsa: Gary Valentine está na fila para tirar a foto de seu anuário escolar, e Alana Kane, que está trabalhando no local, surge como a idealizada mulher mais velha. O garoto então começa a puxar assunto, com a lábia de um malandro vendedor do tipo que te pega pela mão e não deixa mais ir embora, jogando elogios e a convidando para um jantar que ela não aceita imediatamente, mas comparece na hora marcada. A conversa é tão boa que nos esquecemos que Valentine tem apenas 15 anos de idade. Mas, novamente, essa é uma pista falsa. Primeiro porque Valentine, não muito tempo depois, se mostrará o que realmente é: um adolescente; segundo pois, diferente do que a cena inicial sugere, a verdadeira protagonista do filme é Kane.
Aliás, pistas falsas e referências engraçadinhas permeiam todo o filme. Em uma cena, na qual os dois personagens principais estão numa lanchonete, Gary lê um anúncio no jornal sobre um filme pornográfico chamado Garganta Profunda. No mesmo momento, Richard Nixon aparece na pequena televisão lateral anunciando o embargo que deu origem à Crise do Petróleo de 1973. “Garganta Profunda” foi o codinome usado pelo informante que revelou aos jornalistas do Washington Post o escândalo político de Watergate, que veio a derrubar Nixon.
Em outra cena, Jon Peters (Bradley Cooper) surge como “namorado de Barbara Streisand”. Na vida real, Peters foi produtor do musical Nasce Uma Estrela (1976), estrelado por Streisand, que recebeu um remake dirigido por Bradley Cooper em 2018, com Lady Gaga no papel principal. Por Licorice Pizza, o ator disputou somente o SAG Awards 2022, no qual concorreu como Melhor Ator Coadjuvante, mas não levou. Porém, rato das premiações, Cooper integra a produção de O Beco do Pesadelo, longa de Guillermo del Toro que concorre na categoria no Oscar 2022.
Mas a cena inicial diz bem mais do que parece dizer. Após o flerte quase juvenil, apesar da desenvoltura estonteante de Gary, tudo se rompe num ato de machismo, quando o fotógrafo passa a mão em Alana assim que o adolescente dá às costas. Logo no início o diretor transmite a mensagem explícita sobre a condição de aprisionamento a qual Alana vive. O encontro com Gary, um garoto de 15 anos, não parece algo tão ruim, afinal.
É interessante notar, de qualquer forma, que esse relacionamento parece meio infantil desde o princípio, e os personagens não se beijam até os minutos finais – momento em que há o único beijo de todo o filme –, e sequer tocam suas mãos sem um leve constrangimento. O diretor foi esperto ao deixar esse relacionamento no campo platônico, visto que qualquer avanço em outro sentido poderia limitar demasiadamente – e até estragar – o filme.
Em 2022, as três indicações de Licorice Pizza ao Oscar giram em torno do diretor. Nenhum outro aspecto do longa foi contemplado pela Academia, diferentemente do BAFTA, que elencou o filme a 5 categorias, incluindo Melhor Montagem para Andy Jurgensen. Em seu trabalho anterior, Trama Fantasma (2017), Anderson foi indicado a Melhor Direção pela segunda vez, somado às outras 5 categorias em que o filme concorreu. Lá, as relações de poder se estabelecem em uma disputa quase violenta entre os diálogos de Reynolds (Daniel Day-Lewis) e Alma (Vicky Krieps). Já em Licorice Pizza, a relação entre Gary e Alana é branda, e mesmo nos momentos mais emotivos há uma percepção de empatia que ambos conservam entre si.
Paul Thomas Anderson se sagrou um dos grandes cronistas dos Estados Unidos ao retratá-los como nação despedaçada e cega pelo poder. Em Sangue Negro (2007) – longa adaptado do livro de Upton Sinclair, que rendeu o Oscar de Melhor Ator para Day-Lewis –, a relação sádica da busca do domínio através do petróleo é traçada primorosamente. Em Vício Inerente (2014), adaptação do excelente livro homônimo de Thomas Pynchon, a excitação cultural dos anos 1960 é jogada às telas com maestria. Mas olhando em retrospecto, Licorice Pizza soa como uma continuação do cenário explorado pelo diretor em Boogie Nights (1997), que além de se passar nos anos 1970, transcorre na mesma cidade, San Fernando Valley. Contudo, o que Anderson sabe fazer como ninguém é contar histórias – e boas histórias.
De certa forma, ao escolher a comédia romântica, PTA a subverte em seu roteiro original, dando protagonismo à personagem mais velha, e não ao jovem que se apaixona por uma versão idealizada do que seria a pessoa perfeita, como se convencionou a fazer em filmes do gênero. Alana Kane é autoconsciente o bastante para entender a situação esquisita a qual se meteu, e chega a questionar para a irmã, em determinada cena, se não é estranho que ela passe a maior parte do tempo com adolescentes de 15 anos (Valentine e seus amigos). Essa característica joga luz a mais uma brincadeira do diretor, que parece apontar para a alienação boba que outras comédias românticas trazem com protagonistas inconscientes das problemáticas básicas envolvendo a idade.
Em entrevista, o diretor revelou um certo caráter familiar que transpassa a obra, e não por acaso a personagem principal recebe o nome real da atriz que a interpreta. PTA já dirigiu clipes da banda indie HAIM, composta por Alana e suas irmãs – Este e Danielle –, que também atuam no longa-metragem, ao lado de seus verdadeiros pais, Mordechai e Donna. Pouco depois do filme estrear nos cinemas brasileiros, o power trio divulgou a canção Lost Track, que conta com mais um clipe dirigido por Anderson. Antes do lançamento oficial, o vídeo vinha sendo exibido em sessões de Licorice Pizza nos cinemas estadunidenses. Mas o fato é que, desde a idealização do roteiro, o diretor concebeu o filme com Alana Haim na pele de Alana Kane, e, ao assistir o longa, fica difícil imaginar outra atriz que casaria tão bem com o papel.
O complicado, na verdade, é tentar entender por qual razão a artista não está na lista do Oscar, após ter entregado uma atuação primorosa e verdadeira, figurando na disputa de Melhor Atriz no BAFTA e no Critics Choice Awards. Do outro lado, a estreia de Cooper Hoffman tem igualmente um valor sentimental. Seu pai, Philip Seymour Hoffman, além de ter sido um dos atores favoritos de Anderson, foi também um amigo íntimo, e, segundo o diretor, a estreia do jovem Cooper não foi tão estranha, tendo em vista que já o havia dirigido em pequenos filmes caseiros. O fato é que Alana Haim e Cooper Hoffman, juntos, operam em uma sincronia e compaixão tão genuína que, invariavelmente, só podemos sentir empatia por esse casal improvável – não se trata de uma história que aponta para vilões.
Apesar da relação de amor ser o mote de todo o roteiro, Paul Thomas Anderson consegue encapsular em pouco mais de 2 horas de filme uma época nostálgica, misturando-a com sua própria formação pessoal. O título do filme surge daí, em homenagem a uma clássica rede norte-americana de loja de discos que se popularizou nos anos 1970/80, e era frequentada por Lester Bangs e pelo próprio PTA quando jovem (a arte e grafia no título do filme são as mesmas utilizadas no logotipo da loja). Todavia, não é uma história autobiográfica. Segundo o diretor, Licorice Pizza foi concebido através de histórias muito específicas – majoritariamente de amigos, não especificamente dele – que possuem um fundo de verdade, mas que não as representam em sua totalidade.
Como um livro de contos interligados por um mesmo tema, a obra não se restringe ao romance. As cenas e os diálogos avançam sobre as ebulições sociais, e de certa forma apontam para uma narrativa que tem como enfoque o cenário e a ambientação. Todo o entorno está sempre em movimento, e os personagens se movimentam juntos. Por essa razão, o trabalho dos protagonistas de primeira viagem ganha ainda mais força, a considerar também o fato de Licorice Pizza contar com um elenco de peso, que vai de Sean Penn e Tom Waits à Mary Elizabeth Ellis e Benny Safdie, passando pelo infeliz papel de John Michael Higgins, que interpreta Jerry Frick, dono de uma rede de restaurantes especializados em comida japonesa que insiste em fazer a caricatura do que seria um sotaque japonês, soando bastante racista. São apenas duas cenas em que o personagem aparece – nas duas ele finge o sotaque –, e ambas não fazem muito sentido com o resto da história; se fossem cortadas na edição final, nada seria perdido.
Uma das marcas do diretor são as histórias que se interligam, além dos planos longos e os zoom-ins que possibilitam um estado de frenesi hipnótico. Isso se completa com a trilha sonora sempre acertada de Jonny Greenwood – que concorre no Oscar 2022 pela Música de Ataque dos Cães, além de ter feito os temas de Spencer –, guitarrista do Radiohead e amigo pessoal do diretor, cuja colaboração vem ocorrendo há anos. Em 2015, ambos fizeram uma viagem à Índia, dando origem ao documentário Junun.
Entretanto, de todos os filmes na carreira do californiano, Licorice Pizza é o que menos retrata estágios de ansiedade e esgotamento mental – a exemplo de sua outra comédia romântica, Embriagado de Amor (2002), estrelada por Adam Sandler –, e isso se reflete nas canções – tanto nos temas originais de Greenwood quanto nas trilhas que ajudam na composição do ambiente, como Peace Frog do The Doors, Life on Mars? de David Bowie e Stumblin’ in, de Suzi Quatro e Chris Norman.
Talvez um dos motivos para o diretor ter optado por deixar o filme mais “leve” seja, justamente, o entorno histórico que cerca Alana e Gary. Em meio a falência da contracultura e ao fiasco dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, o que mais pode dar errado? Enquanto Valentine aproveita qualquer oportunidade para tentar ganhar dinheiro – provavelmente porque entende isso como uma atitude adulta –, Kane se esforça em construir sentido e significado a uma vida que, aparentemente, não oferece nenhum. Embora ambos pareçam indivíduos tão diferentes, estão ligados pelo simples fato histórico de estarem vivos na mesma época. Isso é o que torna o jogo de olhar tão poderoso no longa, de modo que ambos conversam no silêncio e conseguimos entendê-los, como se o segredo fosse confiado a nós também. No fim, o eco é um só: Licorice Pizza desponta como um dos mais belos e otimistas tratados sobre o amadurecimento e os amores perdidos.