De histórias amargas Hollywood já está cheia

Através da figura de Eleanor Roosevelt, a série sublinha a importância da arte e seu poder político: ‘you have more power to change the world than a government does’, declara sobre a escalação de uma negra como protagonista (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

Quando o super produtor Ryan Murphy se afastou da Fox, casa de suas grandes obras, e assinou com a Netflix, a surpresa foi grande. O mega contrato de Murphy começou com The Politician (2019), uma dramédia política que servia aos agrados do protagonista Ben Platt. A segunda investida no streaming chegou em meio ao isolamento social, na forma da minissérie Hollywood. Centrada num grupo de jovens que sonham em ascender na terra do cinema, a afinada produção busca reescrever a história, sob tutela otimista e humor para abafar injustiças.

Vindo do homem que denunciou o racismo norte-americano em The People v. O.J. Simpson (2016), a homofobia em The Assassination of Gianni Versace (2018), o descaso com a comunidade trans em Pose (2018) e até mesmo os podres da Era de Ouro de Hollywood em Feud (2017), a nova empreitada de Ryan Murphy não se preocupa em seguir a risca as calamidades reais que as minorias sofreram ao tentar uma chance no mercado cinematográfico nos anos 40. Aqui, há espaço para sorrisos no fim do dia e discursos de redenção, problemas como xenofobia e machismo diminuem ao passo que direitos iguais e justiça poética se solidificam nessa realidade fantasiosa.

A trama de Hollywood segue o ator Jack Castello (David Corenswet) que, na luta para conseguir papéis de destaque, parte para a prostituição. Trabalhando no posto de gasolina de Ernie (Dylan McDermott), o jovem conhece figuras influentes do show business e começa a criar contatos no meio. Paralelo à Jack, o diretor Raymond Aisley (Darren Criss) busca se envolver em filmes com minorias protagonistas. Meio-filipino, o personagem de Criss é namorado da atriz afro americana Camille Washington (a estonteante Laura Harrier), outra que batalha para se desprender de estereótipos raciais frente às câmeras. Fechando o time de protagonistas, o roteirista Archie Coleman (Jeremy Pope), negro e gay, tenta provar seu valor no mercado dominado por brancos.

Hollywood acaba como uma utopia para Ryan Murphy (Foto: Reprodução)

Mesclando acontecimentos reais com criações próprias de Murphy e Ian Brennan, o roteiro da minissérie soa singelo demais. Percalços são facilmente contornados e mesmo a maior das injustiças encontra uma resolução agradável após simples diálogos. Os criadores percorrem caminhos fáceis demais, como uma sequência de semáforos verdes surgindo frente aos protagonistas. Essas decisões otimizam a mensagem por trás de Hollywood, ao mesmo tempo que enfraquecem sua estrutura como produto. Se, no gancho final de um dos episódio, rolos de filme são incinerados e ‘perdidos’ para sempre, não é interessante começar o capítulo seguinte buscando num passe de mágica a solução mais ingênua. Parece trapaça.

E talvez realmente seja. Ryan Murphy já ilustrou a Era de Ouro do cinema quando produziu Feud em 2017. Lá, a rivalidade de Bette Davis e Joan Crawford tinha como pano de fundo o mesmo cenário que Hollywood. Na série da FX, Murphy não exitou em soar cruel, filmar a podridão do meio e se ligar a acontecimentos verídicos. Agora, na Netflix, a virada da chave é outra. A minissérie de 2020 em momento algum se compromete com a verdade. As figuras principais carregam arquétipos: o homem negro e homossexual, a atriz negra relegada a papéis de servente, o diretor estrangeiro que não dirige filmes que se identifica. Murphy opta por rodear suas ficções por pessoas reais da época. E essa cartada funciona em harmonia completa.

Não precisamos ver os sofrimentos de Camille lutando contra profissionais racistas pois a história de Hattie McDaniel (Queen Latifah) vem com essa função. Não é necessário mostrar o tratamento tóxico à Claire (Samara Weaving) pela presença da psicologicamente abalada Vivien Leigh (Katie McGuinness). Sabiamente, uma das únicas intersecções do real e do fictício vem por Anna May Wong (Michelle Krusiec). A atriz de ascendência chinesa que muito foi maltratada na Hollywood verdadeira, na falsa de Ryan Murphy encontra atrasada e merecida redenção.

Darren Criss e Ryan Murphy, no Emmy 2018, premiados pelo segundo ano de American Crime Story (Foto: Reprodução)

Tendo em seu baralho uma porção de atores de renome, a série parte para uma homenagem dos anos dourados, mas nunca cai em território de autorreferência em excesso. Jim Parsons, de The Big Bang Theory, vive o mais próximo que Hollywood tem de um vilão. O agente de talentos Henry Wilson é amargo, odiável e um predador sexual. Saindo da casca do nerd anti social, Parsons encontra espaço para monólogos densos e carregados e exala toxicidade em toda e qualquer aparição.

Locações grandes e volumosas dão espaço a um estranho minimalismo. A minissérie passa boa parte de seus sete capítulos em casarões luxuosos, salas de reunião e sets de filmagem. A brilhante Patti Lupone interpreta Avis Amberg, a mulher que assume o comando do Ace Studios e aprova a produção de Meg (é nas costas desse fictício filme que a trama se desenrola). Quem também se articula nos bastidores é Ellen Kincaid, a veterana Holland Taylor. Sua amável personagem ilustra um comportamento de liberdade que a Hollywood de verdade, mesmo muitas décadas depois, ainda não conseguiu abraçar.

O design de produção é de qualidade ímpar, recriando com perfeição a 20ª cerimônia do Oscar, em 1948 (Foto: Reprodução) 

O mundo real demorou a ver uma mulher negra sendo vencedora do Oscar de Melhor Atriz, foi só em 2002 (54 anos após a trama de Hollywood) com Halle Berry. Para um homem negro ganhar Roteiro Original, a espera foi maior, com Jordan Peele se consagrando em 2018, 70 anos de atraso entre série e realidade. E, diferente da ficção, uma atriz de ascendência chinesa nunca venceu em Atriz Coadjuvante. Comparando dados, estamos numa desvantagem brutal.

Com tudo isso em mente, e talvez cansados de ficcionalizar fatos desagradáveis, Ryan Murphy e Ian Brennan criaram uma obra intocada pela injustiça. Lançada num período único da modernidade, no meio da pandemia e do isolamento social, com preocupações martelando as notícias mundo afora, uma folga é muito bem vinda. E, no fim do dia, podemos sorrir percebendo que pelo menos a Hollywood de Ryan Murphy segue à risca a alcunha de terra onde os sonhos se realizam.

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