HEX triunfa sobre a atemporalidade do ser humano

A vertiginosa capa de HEX, em tons de verde neon, preto e branco (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

“Isto é o quanto basta para as pessoas
mergulharem na insanidade: uma noite a sós
consigo mesmas e o que mais temem.”

Desde que o primeiro homem condenou a primeira mulher por bruxaria, as bruxas são personagens constantes nas histórias de terror e seus mitos apavoram crianças há gerações. As mulheres condenadas por serem, supostamente, seguidoras de Satã e assassinas de bebês eram queimadas, afogadas ou enforcadas ao som de aplausos e vivas, mas juravam vingança a seus inquisidores enquanto suas almas deixavam o corpo já apodrecido. Mais recentemente, a História nos mostrou que as verdadeiras bruxas não eram tão más assim, mas o estigma continua a existir.

No entanto, e se uma delas, depois de sua execução, continuasse rondando, corpóreamente, os descendentes de seus assassinos? É isso que HEX, obra escrita pelo holandês Thomas Olde Heuvelt, nos propõe: Katherine van Wyler, condenada à fogueira em 1664, vaga acorrentada e com olhos e boca costurados pela cidade de Black Spring há quase 350 anos, e quem se aproxima dela é acometido por seu sussurro de morte. Publicado no Brasil em 2018 pela Darkside Books e traduzido por Fábio Fernandes, HEX recebeu elogios de grandes nomes como Stephen King e George R. R. Martin pela sua originalidade e tensão ao longo de toda a trama. 

Para acompanhar os passos da chamada “bruxa de Black Rock”, os habitantes de Black Spring criam uma agência de controle, a HEX, com câmeras de vigilância pela cidade, figurantes para afugentar Forasteiros e até um aplicativo, o HEXapp, que mostra o último local em que a bruxa esteve – tudo para manter em segredo a tão antiga maldição. Rondam boatos de que até a Casa Branca sabe do que se passa no lugar, mas tudo é enterrado à sete palmos do chão, para evitar o pânico generalizado envolvendo essa pacata cidade dos Estados Unidos. Katherine faz percursos padronizados, aparece em casas no meio da noite e assusta animais e crianças. No entanto, a bruxa não se aproxima, nada faz. Apenas observa à distância, desafiando qualquer um a chegar perto e ouvir seus sussurros – após isso, a morte é inevitável.

O holandês Thomas Olde Heuvelt (Foto: Reprodução)

De longe, a bruxa é a personagem mais interessante na história. Caracterizada como uma “bomba-relógio paranormal”, todos acreditam que ela está lá por vingança e nada mais. A curiosidade a respeito da história de Katherine movimenta quase toda a primeira parte do livro, #APEDREJAMENTO, e cada capítulo deixa o leitor esperando uma quebra nos seus movimentos ou um ataque fora do comum. Katherine foi morta sob acusação de ter trazido o filho de volta à vida através da adoração ao Diabo, mas ninguém nunca soube se o acontecimento era verídico ou mais uma invenção dos religiosos da colônia holandesa, na época chamada de New Beeck. 

Mas o protagonismo da obra não pertence só à errante: a família Grant, moradores de Black Spring, tem um relacionamento harmônico até os primeiros impactos da narrativa. Steve, pai de Tyler e Matt e casado com Jocelyn, é um professor embebido por senso de justiça e por um amor mais que especial por seu filho mais velho, Tyler. A relação dos dois é o cerne da parte dois, #MORTE, e seu desenvolvimento vai ficando cada vez mais gritante, furioso, intenso. E aí que está a perfeição na escrita de Olde Heuvelt – seus personagens têm lados extremos, recebendo do leitor momentos de julgamento e momentos de compaixão. Afinal, toda a vida na cidade é pautada em esconder e aprender a conviver com uma bruxa acorrentada, sem nunca poder ir embora por conta da maldição. Todos vivem em estado de fúria crepitante, mas contida, contra si mesmos e contra onde moram.

Black Spring é como uma entidade atemporal que parece não ter avançado no tempo. O autor fez um trabalho magnífico em mostrar como, no final das contas, o pódio de vilão não pertence exclusivamente à Katherine, já que os moradores continuam julgando, apedrejando e linchando qualquer um que estremeça a paz tão frágil de suas vidas, da mesma forma violenta que seus ancestrais fizeram em 1664. A temência a Deus só perde para a temência à Katherine, e Black Spring pode ser vista como a grande personagem desiludida e aterrorizada da obra. A cada capítulo, experimentamos altos e baixos, arrepios no pescoço e uma pausinha para respirar e absorver os fatos recém-descobertos.

Katherine van Wyler em ilustração na contra-capa (Foto: Caroline Campos)

Outro ponto forte do livro é a utilização de tecnologia. Vivendo no século XXI, o melhor jeito de manter algo em rastreio é por meio de um aplicativo. Assim, todos sabem por onde Katherine anda, mesmo que seja proibido fotografar ou filmá-la. Esse último leva a uma consequência ainda mais interessante: a inconformidade da juventude. Os adolescentes da nova geração não toleram o fato de sua internet e sua liberdade de expressão serem restringidas. Eles querem mudança, e é isso que buscam durante a trama.

A medida que o medo aumenta e se espalha, a cidade vai ruindo aos poucos, caminhando em direção a autodestruição decorrente de seu fanatismo. E, novamente, somos agraciados por um clímax caótico, que nos deixa excitados e confusos. Tudo, de repente, desmorona, e somos levados a um espaço de pessoas desesperadas enfrentando sua própria natureza selvagem. Famílias, vizinhos, a comunidade em si – ninguém mais se reconhece. Há apenas o medo (o nosso incluído). 

No fim, com suas 368 páginas, HEX nos deixa aterrorizados – mais com nós mesmos do que com historinhas de bruxas e espíritos. A loucura humana é explorada em todas as suas fases, e o leitor enlouquece junto. O ser humano realmente mudou através dos séculos? Ou apenas esconde sua verdadeira índole: um interior de pura histeria? Thomas Olde Heuvelt e Katherine van Wyler podem nos esclarecer um pouco. HEX, em sua catarse, reforça: “Foram vocês que as queimaram. Agora, queimarão – uns aos outros”

Um cartaz que podia estar facilmente nas imediações da floresta de Black Rock (Foto: Darkside Books)

Dica: Se estiver passando por Black Spring, dê uma olhada na cidade. Visite o festival de Halloween e veja a queima da Mulher de Palha, mas volte para a casa. Faça uma trilha pelo Monte Misery e veja o Hudson lá do alto. Mas cuidado com o anoitecer, florestas são perigosas. E lembre-se: não provoque a bruxa de Black Rock.

Um comentário em “HEX triunfa sobre a atemporalidade do ser humano”

  1. Texto excelente, destaque especial para os paragrafos 6, 7 e 8, que capturam a principal essência do texto de forma certeira. Além disso, gostei muito do detalhe na dica, parabéns!

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