Antes do Amanhecer é uma ode aos breves encontros

Antes de desenvolver a crítica, façamos um exercício de pensamento. Quantas vezes já aconteceu de você conhecer uma pessoa, ter uma conversa envolvente, viver um momento daqueles de querer guardar para sempre num gavetinha, e no final nunca mais vê-la novamente?

Céline (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke) e Jesse vivem um dia inesquecível (Foto: Reprodução)

João Batista Signorelli

Poucos filmes foram capazes de capturar tão naturalmente a beleza dos encontros passageiros como Antes do Amanhecer (1995), que em 2020 completa 25 anos e continua tão jovem quanto em seu lançamento. Em um trem cruzando o continente europeu, dois jovens adultos, o norte-americano Jesse (Ethan Hawke) e a francesa Céline (Julie Delpy) se conhecem por acaso. Jesse convence Céline a descer em Viena, onde têm apenas uma tarde uma noite para conviverem antes que ele parta em um voo de volta aos EUA pela manhã e ela retorne a Paris de trem.  

A partir dessa premissa simples, o filme se desenvolve sem grandes reviravoltas ou artimanhas de roteiro, mas sendo sustentado pelos diálogos que abarcam desde discussões sobre religião a visões sobre o amor e perspectivas de vida. Ao contrário de soarem forçados ou apelativo demais, as conversas, que apesar de calculadas demais para serem consideradas realistas, convencem justamente pelo enorme dose de zelo dedicada a elas, sendo entregues por Ethan Hawke e Julie Delpy com tamanha naturalidade que se torna quase impossível desviar a atenção da tela.

Mas não são apenas os diálogos que preenchem o encontro de Céline e Jesse: pequenos gestos, olhares desencontrados e reações discretas povoam os espaços de diálogo e de silêncio por vezes constrangedor, outras amigável. O ápice dessa comunicação não verbal se dá na cena em que os dois, em uma cabine de uma loja de discos, buscam olhar para outro e fugir do olhar oposto, ao mesmo tempo que se divertem com esse jogo de olhares: pequenos detalhes tão identificáveis com a realidade, porém raramente retratados com tamanha sinceridade e verossimilhança. 

As locações roubam cena em Antes do Amanhecer (Foto: Reprodução)

Os diálogos e gestos tão precisos são frutos de intensos ensaios e planejamento, sendo que Hawke e Delpy colaboraram muito com o diretor e roteirista Richard Linklater na adaptação do texto e na criação dos personagens. Jesse e Céline são antagônicos em muitos aspectos, mas ainda assim se identificam por compartilharem das mesmas ambições e dramas de jovens adultos. Se Céline, apesar de não ser religiosa, acredita nas boas intenções das pessoas e tem algum sentimento de fé, Jesse é bastante cético e desconfiado. Ainda assim, ambos tentam fugir ao máximo de construir idealizações românticas: talvez seja um desejo juvenil de não cometer os mesmos erros da geração passada, talvez simplesmente seja o medo do comprometimento consequente de um vínculo amoroso mais profundo, ainda mais pelas impossibilidades que a distância eminente proporcionaria.

Porém, do mesmo modo que fugir do olhar do outro serviu apenas para reforçar a ligação entre os personagens, o envolvimento amoroso acaba por se tornar inescapável, ainda que breve. E se relacionamentos que acabam pelo desgaste, como dos próprios pais de Jesse, partem de um descontamento com que passou, a separação entre ele e Céline se dá com a decepção de não viver o que poderia ter sido, e mesmo que exista a esperança de um reencontro seis meses depois, ela vem juntamente com o gosto amargo do reencontro com a solidão.

O par de protagonistas é orientado pelo diretor Richard Linklater, de Boyhood e Jovens, Loucos e Rebeldes (Foto: Reprodução)

Apesar do final agridoce, Antes do Amanhecer não é, ou não apenas é um filme sobre desencontros. A sua força temática e narrativa reside justamente no poder dos breves contatos humanos que fazemos ao longo da vida, que mesmo passageiros não são necessariamente fúteis, pois tem um profundo potencial de marcar nossa existência e moldar quem somos. E tão poderoso quanto o encontro de Céline e Jesse para eles é o breve encontro que temos com o filme e seus personagens, e se no desfecho há o peso da despedida, é também porque infelizmente não poderemos passar mais tempo com eles. Pelo menos não nos próximos 9 anos.   

É certo que não apenas o final como também o filme todo é ressignificado à luz das sequências Antes do Pôr-do-Sol (2005) e Antes da Meia-Noite (2013), mas isso não impede um olhar direcionado especificamente para a obra, e muito menos retira a ambiguidade contida no desfecho do filme. Somado aos dois filmes seguintes, Antes do Amanhecer integra uma das mais irretocáveis trilogias que o cinema já viu.

Contendo um raro equilíbrio onde cada obra dialoga com outra e adiciona camadas de complexidade em relação ao sua antecessora, mas ainda assim cada uma tem vida própria ao representar um fase significativa do desenvolvimento individual e amoroso do ser humano. Mas mesmo que Jesse e Céline tenham amadurecido com o passar dos filmes por bem ou por mal, nada como o olhar esperançoso e cheio de vida da juventude. 

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