The Last of Us Part II e a noite escura da alma

“Você não pode parar isso” (Foto: Reprodução)

Gabriel Oliveira F. Arruda

“Em uma noite escura,
Com ânsias em amores inflamada
– Ó ditosa ventura! –,
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada;

No escuro e bem segura,
Pela secreta escada, disfarçada
– Ó ditosa ventura! –,
No escuro e bem velada,
Já minha casa estando sossegada.

Nessa noite almejada,
Em segredo, que mais ninguém me via,
Nem eu olhava nada,
Sem outra luz ou guia
Senão a que no coração ardia.”

Em uma noite escura, San Juan de La Cruz (tradução de Carlito Azevedo)

Escrito por São João da Cruz, frade carmelita espanhol do século XVI, Em uma noite escura trata da passagem da alma através das dúvidas e das mazelas em direção à união com Deus. Nessa “noite”, passamos por um caminho que é, por sua própria natureza, incompreensível. Nos sentimos alienados em um mundo sem sentido e arbitrário, cada vez mais distantes do divino.

Narrativamente na “noite escura da alma” vemos nossos personagens incertos e desolados, vagando sozinhos noite adentro e atormentados por coisas piores que o homem. É um momento de dor e sofrimento, mas também de descobrimento e revelação, no qual reconstruímos as pessoas que éramos e achamos uma verdade profunda em nós mesmos. É nessa noite terrível e reveladora que as personagens de The Last of Us Part II habitam. 

“Eu vou achar e matar até o último deles” (Foto: Reprodução)

Anunciado ao final de 2016 para o PlayStation 4, The Last of Us Part II se tornou rapidamente um dos jogos mais aguardados da atual geração de consoles. Após diversos atrasos em sua produção, o jogo foi finalmente lançado em 19 de junho exclusivamente para o sistema da Sony, angariando uma recepção majoritariamente positiva por parte da crítica especializada, assim como controvérsias por conta de vazamentos ocorridos alguns meses antes de seu lançamento.

Sequência direta do sucesso de 2013 da Naughty Dog que vendeu mais de 20 milhões de cópias e se tornou um dos jogos mais premiados de todos os tempos, The Last of Us Part II começa quase imediatamente após o final do primeiro, com Joel (Troy Baker), o então protagonista da história, explicando a seu irmão Tommy (Jeffrey Pierce) sua decisão de salvar a vida de Ellie (Ashley Johnson), uma garota de 15 anos que é, de alguma maneira, imune à infecção fúngica que destruiu a sociedade duas décadas atrás.

Após um breve e tocante momento entre Joel e Ellie, avançamos 4 anos no tempo e tomamos controle dela, que vive pacificamente na comunidade de Jackson, Wyoming comandada por Tommy e sua esposa, Maria. Nesses momentos iniciais, vemos como a vida dela se assemelha a de uma adolescente comum: como ela se distanciou de Joel nos anos que se passaram e como ela tem de lidar com seus sentimentos por Dina (Shannon Woodward), sua melhor amiga que a beijou na frente de toda a comunidade na noite anterior.

No entanto, essa paz logo é interrompida por um evento traumático e violento que coloca Ellie em um caminho de vingança atrás daqueles que a machucaram, levando-a até as ruínas da cidade de Seattle, palco de uma guerra civil entre duas facções de sobreviventes igualmente interessadas em aniquilar uma à outra. É nesse cenário apocalíptico e desolador que Ellie parte à procura de sua própria justiça e paga o preço sangrento por ela ao longo do caminho.

As melhores histórias sobre zumbis e a queda da sociedade nunca são só sobre mortos-vivos e vírus misteriosos, mas sobre a perda da humanidade que nos leva aos nossos piores momentos. Apesar dos monstros da franquia Resident Evil terem ficado cada vez mais grotescos com o passar dos anos, sua maior vilã continua sendo a coisa mais distante possível da humanidade: uma megacorporação.

Em The Last of Us, a humanidade que Joel sente que perdeu por não ter conseguido proteger sua filha é reivindicada na conexão que ele forja com Ellie, uma garota que assim como ele não tem mais ninguém. Na sequência, essa humanidade é mais uma vez perdida nos ciclos de violência e ódio que nos cercam e dos quais nós inexoravelmente fazemos parte.

Em sua busca por justiça, Ellie passa por momentos arrasadores nos quais somos obrigados a olhar para ela e questionar se tudo aquilo vale realmente a pena: como justificar as atitudes que ela (e por consequência a própria pessoa que está jogando) comete? Essa jornada brutal de retribuição acontece em uma cidade dilacerada pela guerra e reclamada pela natureza, em um dos cenários mais belamente realizados da geração, que contrasta cruelmente com as ações que presenciamos, tanto por parte de Ellie quanto por outras personagens em suas próprias jornadas. 

Após 24 anos do início da pandemia, Seattle se tornou um fantasma da civilização e daquilo que as personagens perderam (Foto: Reprodução)

O jogo não procura deslegitimar a sede por justiça de nenhuma das personagens, muito pelo contrário: toda as elas possuem justificativas para os atos que cometem e a narrativa nunca pede que quem está jogando esqueça disso. Para que o ciclo de violência se perpetue, é imperativo que estas justificativas sejam inquestionáveis e, até certo ponto, quase dogmáticas. Nós inicialmente não questionamos o direito de Ellie de ir atrás daqueles que, na nossa visão, merecem o peso de tal vingança.

Parte do gênio de The Last of Us Part II está na maneira com que ele rejeita esses imperativos, à procura de uma jornada mais honesta do que estamos acostumados a esperar de narrativas que revolvem ao redor de vingança e de injustiça.

O jogo é estruturado de maneira mais complicada que seu antecessor, que se passa ao longo de pouco mais de um ano e é separado por estações que dão espaço para as personagens aprofundarem suas relações fora da tela. Aqui, Neil Druckmann (The Last of Us, Uncharted 4: A Thief’s End) e Halley Gross (Westworld, Too Old to Die Young), roteiristas da sequência, utilizam o tempo de maneira mais lúdica e maleável. Há digressões para os anos em que Ellie passou crescendo em Jackson que ajudam a recontextualizar cada vez mais suas motivações, contribuindo para um desenvolvimento cada vez maior da personagem.

Neil Druckmann e Halley Gross, roteiristas de The Last of Us Part II. Druckmann também atua como Diretor Criativo enquanto Gross foi a líder da narrativa (Foto: Reprodução)

Ao todo, é louvável ver o quanto The Last of Us Part II não está interessado em agir apenas como uma mera sequência, mas sim como uma obra completa e independente, com implicações extensas e profundas no resto da narrativa. Não há sentido em escrever uma sequência que não procure enfatizar as implicações do final do primeiro jogo ou que termine reproduzindo o mesmo status quo dele. A única justificativa para retornar a essa história e a estes personagens é a de contar algo que tenha o tipo de impacto que estamos vendo.

Todas as mecânicas do jogo também são estruturadas ao redor de sua narrativa e reproduzem elementos de suas personagens. É importante notar o quanto a Naughty Dog se utiliza de técnicas cinematográficas nas suas histórias e o quanto elas só são possíveis por conta da tecnologia e do orçamento necessários para trazer performances tão detalhadas de seus atores.

Outros estúdios, principalmente estúdios independentes, também estão contando histórias cada vez mais humanas e detalhadas, como Hollow Knight e Celeste, mas que não recebem a mesma atenção que um blockbuster como The Last of Us Part II. Isso não é um argumento contra ou a favor do jogo, apenas algo que deve ser levado em consideração quando falamos sobre jogos no geral.

Apesar da interatividade do jogo as vezes se limitar à apertar um determinado botão que aparece na tela, essa simplicidade consegue atingir efeito máximo em algumas das partes mais intensas da trama (Foto: Reprodução)

Todo o elenco atua de maneira impecável, tanto aqueles que já conhecíamos quanto as novas adições da trama. Troy Baker continua sendo excepcional no papel de Joel, agregando nuance e profundidade a um personagem já famoso por sua complexidade e ambiguidade moral. Shannon Woodward, veterana de Westworld, trabalha muito bem e é capaz de transmitir o relacionamento entre Dina e Ellie em poucas palavras, nos ajudando a completar lentamente as lacunas dos últimos 4 anos desde o final do jogo anterior. Laura Bailey faz Abby, uma mulher misteriosa em sua própria jornada de retribuição que cruza com o caminho de Ellie de maneira inesperada.

O trabalho de Ashley Johnson ao interpretar uma Ellie mais velha, mais distante e obstinada e ao mesmo tempo ser capaz de voltar para a garota mais jovem e otimista que conhecíamos do primeiro jogo durante as digressões da narrativa não é nada menos do que fenomenal e digno de todo e qualquer prêmio que essa indústria seja capaz de oferecer. Parecem haver milhares de emoções em apenas um único momento do jogo, que não se contenta apenas em te dizer como as personagens estão se sentindo, mas te dá liberdade para interpretar as expressões que são evidentes na tela.

Shannon Woodward (Dina) e Ashley Johnson (Ellie) durante o processo de captura de movimentos para uma das cenas mais emblemáticas de The Last of Us Part II [Foto: Reprodução]
O foco no relacionamento entre ela e Dina também é revigorante na conjuntura atual da indústria de jogos. Com alegações recentes expondo uma cultura de misoginia e abuso em diversos estúdios, com mulheres sendo silenciadas e histórias com protagonistas masculinos recebendo favoritismo, é ótimo ver o romance entre duas mulheres na frente e no centro de um dos títulos mais aguardados da década. A diretora Nia DaCosta (Little Woods, A Lenda de Candyman) relatou em um tweet após terminar o jogo: “(…) não é pouca coisa que duas mulheres tiveram o tipo de jornada e desenvolvimento de personagem geralmente reservado apenas para homens.”

A interatividade do jogo também opera de maneira mais profunda em um nível narrativo, sofrendo uma reviravolta ao final de sua primeira metade que provoca o jogador de maneiras complexas e cruéis, mas que caminham para um entendimento mais sensível de suas motivações. Sua jogabilidade caminha entre fluidez e mecanicidade, em que cada encontro hostil te dá a sensação de estar em um filme de ação e corridas frenéticas de um ponto a outro do cenário são capazes de te deixar sem fôlego. Capítulos mais calmos te oferecem momentos para respirar e internalizar os acontecimentos violentos que os precedem, mas que ainda produzem emoções tão intensas quanto àquelas dos momentos mais tensos.

Em seus melhores momentos, os confrontos de The Last of Us Part II são capazes de invocar uma ferocidade animal no jogador (Foto: Reprodução)

Com um combate brutal, impactante e visceral, o jogo insere aquele que está jogando diretamente como ator da violência e da destruição, permitindo que ele se apoie nas justificativas de suas personagens para cometer esses atos, o que, paradoxalmente, acaba desconstruindo essas justificativas ao mesmo tempo que permite que você habite essas visões e verdadeiramente as compreenda.

É possível identificar inúmeras referências textuais na narrativa de The Last of Us Part II, desde a inspiração no cinema western ao contar a história de uma heroína à procura de sua justiça em uma fronteira com a natureza selvagem, até semelhanças com o cinema samurai (chanbara), que narra o conflito entre o ninjō e o giri, a consciência e o dever (em termos gerais e imprecisos). É uma obra que convida esse tipo de análise ao mesmo tempo que provê uma experiência completa em si mesma e que não depende dessas referências para o seu entendimento.

A trilha sonora, mais uma vez composta pelo argentino Gustavo Santaolalla (O Segredo de Brokeback Mountain, Relatos Selvagens), toma uma direção mais sutil dessa vez, sem chegar a destoar do original, mas que reflete o turbilhão emocional em que as personagens estão inseridas, potencializando e elevando algumas das cenas mais emocionalmente complexas da trama a novos níveis.

Apesar de ter sido anunciado como uma obra sobre ódio, The Last of Us Part II é intrinsecamente sobre o amor. Sobre o amor que é capaz de nos fazer menos sozinhos e sobre o amor capaz de nos isolar. É sobre a dor que nos permeia e que nos guia e sobre como procuramos nos libertar dela através de ainda mais dor. Nas palavras de Natalie Flores para a Paste Magazine:

“É uma história de pessoas impotentes e destruídas que acham que vão conseguir se consertar destruindo umas às outras. Não há vilões, mas também não há heróis, e The Last of Us Part II é inteligente o suficiente para não fingir que pode decidir quem se encaixa em cada categoria.”

Não é uma história fácil, e isso reflete a maneira com que ela é contada, com digressões e mudanças bruscas de perspectiva que te forçam a questionar sua própria interpretação dos eventos que você não só presencia, mas em que você é um participante ativo. E de maneira similar, as conclusões a que você chega ao final dessa história arrasadora são só suas.

A única luz que carregamos noite adentro é a que levamos conosco.

“Quando tudo isso terminar, vou te ensinar a tocar violão” (Foto: IGN Brasil)

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