Três pratos de glitter para três tigresas glamourosas

Drag Race fecha 2021 com temporadas no Reino Unido, Canadá e Itália, que, embora singulares, se complementam

Arte em imagem retangular de três drag queens. Na imagem, à esquerda, há uma drag branca de cabelo rosa pastel. Sua roupa e sua maquiagem estão também na cor rosa pastel. Há ainda um detalhe azul pastel em sua ombreira. Ao centro há uma drag branca de cabelo loiro. Sua roupa é laranja de mangas bufantes. Sua maquiagem é rosa. À direita há uma drag branca de cabelo curto e ruivo. Ela veste um vestido preto sem mangas e com gola alta. Há detalhes prateados em seu vestido, assim como em seu brinco. O fundo da imagem é um degrade rosa nas bordas e laranja ao centro.
Icesis Couture, Krystal Versace e Elecktra Bionic: três Coroas para três Rainhas (Foto: World of Wonder/Arte : Jho Brunhara)

Vitor Evangelista

Não parece, mas ao longo dos últimos doze meses, RuPaul (junto de suas subalternas estrangeiras) colocou a Coroa de campeã em nove rainhas diferentes, permanecendo no ar por todas as 52 semanas do ano. Depois de analisar seis dessas jornadas, apontando atrativos e defeitos de cada franquia, o Persona inicia sua própria caminhada no campo dos Artigos, trazendo um panorama do fim de 2021 no mundo das drags. Corredoras, deem partida em seus motores e me acompanhem nessa rucapitulação.

Começando pela terceira edição da franquia inglesa, é necessário um breve contexto do cenário da Terra da Rainha. Por conta da pandemia, a temporada 2, agendada para 2020, foi adiada, sendo transmitida no começo do ano seguinte e sagrando Lawrence Chaney no pódio. Em detrimento do contrato com a rede BBC, a companhia de Drag Race precisava veicular o ano 3 ainda em 2021, e assim o fez.

Cena da terceira temporada de Drag Race UK. A cena mostra a drag queen Krystal Versace na passarela. Ela é branca, alta e magra. Usa um casaco de pêlo todo colorido, com detalhes em verde, azul, amarelo e vermelho. Sua peruca é estilo poodle, seguindo o padrão de cores da roupa. Ela usa botas longas, uma rosa e outra branca, e tem olhos e uma boca com língua de fora no casaco.
Com apenas 19 anos de idade, Krystal Versace se tornou a vencedora de Drag Race mais jovem da história (Foto: World of Wonder)

Dando a Chaney o posto de reinado mais curto dentre todas as vitoriosas, em outubro chegou Drag Race UK 3, com um dos elencos mais chamativos do programa. Entre as competidoras, tínhamos a retornante Veronica Green (desclassifica após testar positivo para o covid na season 2), a primeira mulher cis da franquia, Victoria Scone, e duas rainhas de apenas 19 anos de idade (Anubis e Krystal Versace).

Na ânsia de nivelar a qualidade à corrida anterior, RuPaul sofreu com acasos do destino. Primeiro, Green se mostrou inapta a competir, com o emocional afetado pelo isolamento, a falta de dinheiro e trabalho e uma severa depressão. Lado a isso, Scone se machucou no episódio de estreia, fraturando o joelho e sendo impossibilitada de continuar na disputa. Em uma tacada só, no capítulo 3, a apresentadora tinha duas das favoritas eliminadas e um elenco murcho para preencher a cota anual. 

Cena da terceira temporada de Drag Race UK. A cena mostra a drag queen Kitty Scott-Claus desfilando na passarela. Ela é branca, gorda e usa uma roupa vermelha e verde, com detalhes de frutas, segurando uma cesta, estilo Chapeuzinho Vermelho.
Kitty Scott-Claus foi um dos maiores destaques de UK3, mas a proximidade de sua persona drag com a vencedora anterior da competição afastou suas chances de levar a Coroa no fim (Foto: World of Wonder)

A solução foi fazer-nos apaixonar por Versace, jovem de maturidade, mas extremamente polida na arte da maquiagem, dos visuais e da apresentação. Suas falhas, como Kitty Scott-Claus se deliciou em apontar no Roast das Boas Garotas, estavam em todos os demais campos do programa: desafios de atuação, comédia e no Snatch Game. Mas não teve jeito: depois de RuPaul beijar a passarela que Krystal desfilava, se emocionar com suas palavras e confidenciar que ela havia “nascido para ser uma drag queen”, a competição parecia dada como previsível.

Tentando inverter as suposições do público, RuPaul remanejou suas cartas. As doces e adoráveis River Medway e Choriza May foram eliminadas de uma vez só, em uma das piores Dublagens do ano. Quem teimou a ser mandada embora foi Vanity Milan, a única competidora negra da temporada, que lidou com o fardo de representar toda uma minoria, tendo de se provar semana a semana. Suas habilidades não tão avançadas com o pincel de maquiagem se safaram da guilhotina por seu fogo e paixão na hora dos Lip Syncs.

Cena da terceira temporada de Drag Race UK. A cena mostra a drag queen Ella Vaday caracterizada como Nigella Lawson, sentada na bancada do Snatch Game. Ela é branca, tem uma peruca castanha e usa seios falsos, com destaque para o decote e a blusa amarela. Ela tem uma das mãos no queixo, com expressão pensativa e tem uma placa de papel à sua frente, com “Nigella Lawson” escrito em caneta preta.
Com vitórias nos Desafios do grupo musical, de costura, atuação e no Snatch Game, Ella Vaday tinha tudo para vencer a competição; tudo, menos a simpatia de RuPaul (Foto: World of Wonder)

Sem pestanejar, Milan se destacou com uma das Assassinas de Dublagens mais vorazes do ano. Vale ressaltar que sua competição nesse quesito não era muito afiada, e as decisões de salvar a drag sucessivamente iam de acordo com o humor e arbitrariedade da apresentadora. Se em uma semana RuPaul perdia tanto Veronica quanto Victoria, ela necessitava poupar alguém para que o número de episódios não fosse afetado. 

Charity Kase e Scarlett Harlett se enfrentaram duas vezes, mesmo que em nenhuma das batalhas o público enxergasse justiça ou um senso de verdade. No fim das contas, as temporadas de Drag Race começam com o roteiro escrito, com as finalistas pré-selecionadas e com a narrativa prontinha para ser assada e servida para a audiência, já acostumada com o formato.

No começo de 2021, Lawrence se apequenou diante de Bimini, que ganhou 4 importantes desafios, só para perder a Coroa no momento derradeiro. No final de 2021, Krystal se apequenou diante de Ella Vaday, que ganhou 4 importantes desafios, só para perder a Coroa no momento derradeiro. Não é uma piada, apenas fatos.

Cena da terceira temporada de Drag Race UK. A cena mostra a drag queen Krystal Versace de pé na passarela, comemorando e gritando com um cetro brilhante em mãos. Ela usa peruca loira e vestido em formato de trompete preto, com joias douradas na cintura. Ao fundo, vemos uma drag queen de vermelho, desfocada.
Doa a quem doer, Krystal superou o nervosismo da reta final e, ao som de You Don’t Own Me, conquistou a Coroa em um dos vestidos mais estilizados do ano 3 (Foto: World of Wonder)

No Canadá, a coisa foi um pouco diferente. Ao contrário do UK, que vinha de uma temporada anterior aclamada, a estreia da franquia do Norte sofreu com julgamentos partidários e uma porção de decisões questionáveis. Depois dos fãs da série desovarem comentários racistas por cima do apresentador Jeffrey Bowyer-Chapman, o mesmo saiu da bancada do programa, assim como Stacey McKenzie (que alegou como motivo da partida um conflito de agenda).

Sobrou apenas Brooke Lynn Hytes, que ganhou a companhia de 3 co-apresentadores: Brad Goreski, Amanda Brugel e Traci Melchor. De cara, o programa encontrou o tom e centralizou tudo na figura de Hytes, fazendo uso dos demais componentes da bancada como adereços, assim como o programa americano faz com Michelle Visage, Carson Kressley e Ross Mathews. 

Cena da segunda temporada de Canada’s Drag Race, mostra a drag queen Icesis Couture desfilando pela passarela. Ela é branca, careca e usa roupas brancas, com uma espécie de aparelho bucal que abre sua boca mostrando a gengiva. O visual ainda tem uma auréola acima da cabeça.
Ela não tem joelhos ruins coisa nenhuma! (Foto: World of Wonder)

Com a comédia afiada no lado dos jurados, o elenco chegou esbanjando talento e diversidade na arte drag. Chega a ser curioso, entretanto, que o lado cômico das participantes fuja do padrão da franquia: quando veio a hora do Desafio de Leitura, ninguém sabia o que esperar desse bando de não-comediantes. O resultado geral? Uma das melhores Corridas de 2021, junto da espanhola.

Icesis Couture, a eventual campeã, já começou arrepiando, servindo visuais para brilhar os olhos e um carisma muito singular. Se salientaram também sua posição no Desafio do Makeover, quando priorizou o bem estar de sua parceira e caiu nas Piores da Semana tendo ciência do que era mais importante naquele momento. Na verdade, todo esse contexto merece devido holofote.

Cena da segunda temporada de Canada’s Drag Race. A cena mostra um close na drag queen Pythia, com o rosto pintado de branco, com olhos claros e sobrancelha fina, e ela tem uma cabeça prostética, pintada igual seu rosto de verde, alocado no ombro direito, dando a impressão de que são gêmeas siamesas. Elas usam perucas pretas e um vestido verde, com colares de pérolas e de ouro em volta dos pescoços. Na mão direita, Pythia segura um longo cigarro, preso a um aparelho que não suja suas luvas brancas.
Pythia surpreendeu com roupas totalmente inovadoras e fora da caixinha, como sua criação mitológica de centauro e a gêmea siamesa com toques de circo dos horrores (Foto: World of Wonder)

No Makeover, as drags precisam transformar alguém em sua “familiar”, recriando tanto os looks quanto a atitude. O tema da vez foi Formatura Queer, e o programa convidou 5 jovens que não tiveram acesso a sua própria Prom, tanto por conta da pandemia quanto por serem parte da comunidade LGBTQIA+. Nisso, a temporada ganhou seu episódio mais dinâmico, emocionante e verdadeiro. 

Quem venceu foi Pythia, drag natural da Grécia e que usa e abusa do não-binarismo em sua interpretação artística. Cheia de singularidades, a competidora tinha o favoritismo a seu favor (com 2 vitórias e nenhuma aparição no Bottom 2). Tudo mudou nas semifinais, quando tomou parte o episódio de Reunião das drags, comumente posicionado depois dos capítulos competitivos e antes da Grande Final.

Cena da segunda temporada de Canada’s Drag Race. A cena mostra a drag queen Adriana desfilando na passarela. Ela está usando uma roupa inspirada por Maria Antonieta e tem uma bandeja no pescoço, e sua cabeça entra no lugar do prato. Na bandeja, existem vários pães, bolos e doces. Ela usa um vestido púrpura, com detalhes em lilás e rosa, e uma peruca na mesma paleta de cores.
Cortem-lhe a cabeça! Mas antes disso, posem-na para a foto (Foto: World of Wonder)

Dessa vez, em meia hora, as rainhas lavaram a roupa suja, e na parcela final, foi a vez das 4 drags restantes na competição darem a vida em Dublagens no estilo mata-mata. Na hora do vamos ver, Icesis fez valer seu nome, Pythia tremeu na base e Kendall Gender levou a melhor contra a irmã drag Gia Metric, eliminada na quarta posição. Metric, muito comparada à estética da americana Gigi Goode, não tem um arquétipo mais tão vantajoso ao programa, diferente de anos anteriores, quando a própria Goode, assim como Violet Chachki e Aquaria, eram louvadas por serem esguias e fashionistas.

Com poderes de performance, passarelas refinadas e carisma abundante o bastante para distribuir, Icesis Couture deu início ao reinado do Gelo, vencendo o prêmio e se juntando à Priyanka no panteão canadense das vencedoras. Entretanto, se tratando de uma temporada tão proveitosa, vale a menção á algumas pérolas do elenco: Océane Aqua-Black encantou por sua sinceridade e sua triste história de nascença; a Miss Simpatia Suki Doll trazia frescor ao Ateliê; Synthia Kiss cativou no Snatch Game; Kimora Amour assustou os desavisados no Lip Sync que a eliminou; e Adriana partiu com a promessa de um futuro estrelado.

Cena da segunda temporada de Canada’s Drag Race. O GIF mostra a drag queen Kendall Gender sorrindo e acenando com a mão direita. Kendall é negra de pele clara, usa uma peruca escura com mechas grisalhas e luvas, boina e vestido verdes com estampa preta, além de um par de seios de plástico e uma gargantilha com seu nome, Kendall Gender.
Kendall Gender, não Jenner, G-E-N-D-E-R (GIF: World of Wonder)

A saída da sombra do fracasso da temporada de Priyanka, Jimbo e Lemon foi encontrar luz própria. O que por si só virou regra em Drag Race e é evidenciado por essa colagem de Reino Unido, Canadá e Itália, mas em três situações e polos distintos. Ao passo que o UK tentava replicar, com pressa e boatos de episódios gravados em tempo recorde, o sucesso do ano 2, o Canadá fugia de um fantasma ainda recente e o Itália encaixava a Corrida das Loucas para os moldes da TV local. 

Com apenas 6 capítulos, mas com durações variando entre 60 e 90 minutos, acompanhar Drag Race Italia foi uma tarefa árdua e quase nada recompensadora. O humor não estava lá, nem o valor de produção esperado para a prima europeia. Faltava gingado, faltava poder de concisão e de omissão. Blocados, os mini-desafios e os desafios maxi se estendiam por tempo demais. 

Cena da primeira temporada de Drag Race Italia. A cena mostra a drag queen Elecktra Bionic desfilando pela passarela. Ela é alta, magra e branca, e usa um vestido claro e brilhante, com tons de prata e dourado, além de uma peruca escorrida loira com raíz escura, estilizada num rabo de cavalo no alto da cabeça.
Sem vencer nenhum desafio principal, Elecktra acabou sendo a primeira campeã italiana da Corrida das Loucas (Foto: World of Wonder)

Nem mesmo a presença de palco da apresentadora Priscilla foi o bastante para iluminar uma temporada tremendamente embolada e sem propósito. Às vezes, ninguém ouvia Sashay, Away; às vezes, duas pessoas eram mandadas embora. O ápice da bagunça veio após um intrigante momento de bastidores, com uma raivosa Ava Hangar, puta da vida com as críticas injustas que recebeu, enquanto uma estourada Enorma Jean saiu de cena aos trancos e barrancos.

A tela cortou para uma mensagem escrita, que alegava uma decisão da produção em não mostrar o que de fato aconteceu nas brigas, em respeito aos profissionais envolvidos. No capítulo seguinte, Priscilla quebrou os protocolos e antes da passarela, chamou as duas para Dublarem. Se Enorma Jean desceu o cacete em alguém no Untucked, não ficamos sabendo. O que o show enfatizou, tanto pela postura dos jurados quanto da drag, foi que algo barra pesada tomou parte.

A cerimônia na passarela da Itália era outra das estranhezas da série. Invertendo a lógica das críticas e das deliberações, as drag queens finalistas eram metade desgastadas e metade boas demais para um programa tão mal feito. No fim, saiu vencedora Elecktra Bionic, a primeira competidora da história a ganhar a temporada sem vencer nenhum Desafio principal (ela venceu 4 dos mini, mas nenhum dos maxi). Ao lado de Down Under e da segunda temporada de Drag Race Holland, o spin-off italiano nadou para morrer sem qualquer deleite ou aproveitamento. 

Cena da primeira temporada de Drag Race Italia. A cena mostra a drag queen Enorma Jean no Ateliê. Ela está desmontada, usando roupas comuns e olhando em direção à câmera, com um sorriso singelo no rosto. Ela é um homem de 46 anos, pele clara e cabelos na altura dos ombros, cor grisalha com mechas escuras. A mesa onde está apoiando é laranja, tem uma garrafa d'água na mesa e ao fundo, desfocado, vemos a parte superior de um manequim branco.
No auge de seus 46 anos, Enorma Jean é uma das competidoras mais velhas da franquia (Foto: World of Wonder)

Estamos no segundo mês de 2022 e Drag Race já tem um par de temporadas no ar. Quer o destino concretize esse próximo ciclo como um cheio de Corridas novas, o ideal é que as franquias encontrem sua própria maneira de caminhar e sustentar-se no ar. Mais benéfico do que cansativo, o avanço do legado de RuPaul é um avanço da inclusão, da diversidade e da criação de espaços seguros para pessoas queer.

Krystal Versace se tornou a vencedora mais jovem do programa, Icesis Couture provou que estar entre as Piores da Semana mais de uma vez não é um impeditivo para pegar a Coroa e Elecktra Bionic deixou o argumento do histórico na competição definir quem vence comendo poeira. No fim, Drag Race se mantém fiel aos princípios de criação: que a melhor drag queen vença. Ou, no melhor dos casos, a drag que facilmente se adapta ao formato de competição do programa. Com uma fórmula de sucesso em mãos, RuPaul alinha a fábrica, produzindo incessantemente, para todos os gostos, para todos os momentos. 

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