Aviso: o seguinte texto discursa sobre temas que podem se tornar gatilhos para algumas pessoas que sofrem/sofreram com dependência por uso de álcool e depressão.
Marina Iwashita Canelas
Se por um lado, as cidades industriais inglesas do final da década de 1970 à metade de 1980 já tivessem tido dias mais coloridos, por outro, a sua cena musical era visualmente escura, com neblina e lápis preto nos olhos. Foi em uma apresentação pouco concorrida dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall, em Manchester, que os fãs ali presentes posteriormente formariam bandas do movimento post punk, como o Joy Division e The Cure.
Oriundos de Crawley, no West Sussex, a banda The Easy Cure foi formada pela personificação gótica da época, Robert Smith, em 1976. Foi durante esse período que grandes outros grupos surgiram, como Siouxsie and the Banshees e Echo & The Bunnymen, porém a banda liderada por Smith é a única que se mantém ativa até hoje, ainda que tenha sofrido inúmeras mudanças na sua formação.
O final dos anos 1980 para a banda não foi dos mais tranquilos. Apesar de em 1987 a banda ter aterrissado nos EUA com o sucesso pop de Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me, The Cure queria voltar a sua origem gótica, do disco Pornography (1982). Enquanto Smith passava por uma combinação de depressão causada pela popularidade repentina da banda e a crise dos 30 – além do uso pesado de LSD –, o tecladista Lol Tolhurst passava por conturbações com o álcool e era demitido.
O disco Disintegration veio a público há 35 anos, em maio de 1989, para infelicidade do selo Elektra, que acusou o grupo de cometer um suicídio comercial por voltarem a sonoridade gótica. Como fator surpresa, temos o disco de maior sucesso da banda, fazendo parte da lista dos 500 melhores álbuns de todos os tempos pela revista Rolling Stone, na 116ª posição.
O grupo britânico aborda seu momento de desintegração enquanto banda e vocalista, mas, por mais que tenha uma aura depressiva e melancólica, Disintegration fala de todos os momentos da vida. Seja para você se afogar em mágoas e depressão, para se sentir abraçado ou até se imaginar chegando no outro plano da vida com essa trilha sonora.
Ouvir Disintegration é se sentir conectado com a sua alma, até nos momentos em que nada faz sentido. O disco te leva para um espaço onde só existe você, rodeado pela voz apaixonante de Robert Smith, o baixo carregado de Simon Gallup e os sintetizadores que Paul Thompson usa. É nesse cenário que temos um registro super emocional, onde tudo é muito cheio, carregado e superlativo. A produção transforma o momento de ouvir música em algo tão íntimo, que alcançamos uma paz anestesiante.
Por ter tanto sentimento dentro de si, o disco quase nos faz não saber como reagir em alguns momentos. Entre eles, a maior faixa de abertura para álbuns, a aclamada Plainsong, que transmite tristeza e dor, mas ainda é calmaria e amor, com seus mais de dois minutos introdutórios explorando sons de sinos e da linha do baixo. Quando passamos a ouvir os vocais de Smith, temos a sensação de que um anjo fala conosco. Suas falas possuem eco e apesar de cantar de um jeito simples, sem muitos esforços, o vocalista passa para a obra toda a sua angústia, paixão e verdade, tornando tudo muito mais real – em um determinado momento você passa a se questionar, na verdade, o que é real.
Sendo Disintegration um disco sobre ter sentimentos em excesso, Lovesong surge como a faixa mais romântica, que Robert Smith escreveu como presente de casamento para sua esposa, Mary Poole, com quem é casado desde 1988, um ano antes do registro. “Não importa a distância/Eu sempre te amarei” diz o vocalista, fazendo promessas de compromissos para sua amada. Trazendo um comparativo das diversas facetas do álbum, o grupo britânico fez uma serenata profunda pela sua letra, mas com uma melodia alegre e que transmite esperança. Quando comparado com o cover que Adele gravou para a penúltima faixa de 21, a cantora londrina traz solidão e mistério na sua versão, tanto pelo arranjo musical quanto pela forma de cantar da artista.
Outro grande hit foi a assustadora Lullaby, que traz Smith sussurrando “E não há nada que eu possa fazer quando percebo com pavor/Que o Homem-Aranha vai fazer de mim o seu jantar desta noite”. O diretor Tim Pope foi o responsável pelos clipes de Disintegration que passaram na MTV, dando mais força e visibilidade a banda na época, ajudando a consolidar o visual gótico de Smith e tornando-o um dos vocalistas mais conhecidos de todos os tempos. Para o clipe do ano do British Awards 1990, Pope disse a NME que na faixa havia “humor, mas por baixo disso há todas as obsessões psicológicas e claustrofobia de Smiffy (apelido para Smith)”.
Em 2023, The Cure foi headliner do festival Primavera Sound e trouxe a turnê Shows of a Lost World para a América Latina. Com pelo menos três horas de duração por show, dos mais de 45 anos de banda cheio de hits, o grupo cantou metade de Disintegration no setlist paulistano, que além dos citados acima também contou com a title song e Fascination Street.
Não é à toa que a Pitchfork deu nota 10 para Disintegration, um álbum fascinante e cheio de sentimentos que abraça e conforta, mas que também pode doer e atiçar uma parte profunda que não queremos visitar. Robert Smith, com toda sua graciosidade e grandes sentimentos, transborda emoções para nós, que podemos ouvir sua obra mais desintegrada sendo a mais completa justamente por isso.