Curtas Jornadas Noite Adentro é o eterno delírio do compositor

Cena de Curtas Jornadas Noite Adentro. Na imagem vemos um bar, suas paredes são amarelas e suas portas azuis. Da esquerda para a direita há quadros na parede, uma geladeira branca, caixotes de cerveja e armários brancos. À direita há um grupo de quatro homens e uma mulher, todos negros, sentados em roda numa mesa. A mesa está cheia de garrafas de cerveja. Em pé ao lado deles tem um homem branco. À esquerda e mais ao fundo tem um homem e uma mulher sentados e uma criança correndo.
Passeando por botequins, Curtas Jornadas Noite Adentro chega na 45ª Mostra de Cinema em São Paulo (Foto: Memória Viva Cine)

Ana Júlia Trevisan

Um dos ritmos mais ricos do mundo, o samba é uma expressão artística e um patrimônio cultural imaterial brasileiro. No samba, até as composições mais tristes são encantadoras por sua melodia que conversa diretamente com a alma brasileira. Popular, negro, por muitos anos renegado e criminalizado, o gênero é espelho de um sociedade quase sempre esquecida, ou pelas palavras da madrinha Beth Carvalho: “O samba é do povo, que sofre, que sabe o que é a fome”. E, na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o samba é representado na Mostra Brasil por Curtas Jornadas Noite Adentro.

Às avessas, o filme começa com os créditos subindo, um homem dedilhando um violão e outro fumando apoiado na janela, com o olhar voltado para a noite. Logo, a narrativa denuncia sua simplicidade, não há nada de extravagante em Curtas Jornadas Noite Adentro, a beleza está mesmo na roda de samba: criada e pertencente ao povo e servindo ao mesmo. A produção, dedicada ao pai do diretor Thiago B. Mendonça, conta a história de seis amigos que labutam durante o dia e na noite vivem o sonho movido a samba, compondo e ensaiando suas músicas

“É lindo a gente vê/O samba amanhecer/Cheio de poesia”: os versos de Noca da Portela que iniciam o batuque de Curtas Jornadas Noite Adentro refletem a alma dos seis personagens. Trabalhadores desvalorizados vivendo turnos precários, transporte público lotado, o sono é mínimo e o prazer em fazer samba alivia as mágoas, ao mesmo ponto que gera frustrações pelo modo como é visto. O sorriso ilumina o rosto com o pandeiro, o ganzá e o tamborim na roda de samba. Esclarecendo as verdades sem medo de agir, sorrindo os mesmos sorrisos e chorando o mesmo choro, o vínculo criado pelos amigos de samba é resistente e os tornam também amigos de luta, ajudando na construção da casa. Para nivelar a vida em alto astral, é na roda que os personagens mantêm a felicidade ancorada. Ah, se não fosse o samba!

Cena de Curtas Jornadas Noite Adentro. Na imagem há dois homens. O da esquerda é um homem branco, de cabelos pretos na altura dos ombros. Veste uma camisa preta estampada de amarelo e calça preta. O da direita é negro, com cabelos pretos e raspados. Veste camisa branca estampada de marrom e calça marrom. Eles estão andando por uma rua não asfaltada e à esquerda vemos casas de tijolos e telhado de brasilit. À direita há um carro antigo amarelo.
“Nascido no subúrbio nos melhores dias” (Foto: Memória Viva Cine)

Curtas Jornadas Noite Adentro cumpre seu maior dever social que é o de denunciar como o mundo do samba é visto. Associados à imagem do malandro, o estilo musical foi criminalizado no início do século XX por ser representado pela figura do pobre, periférico e negro, perseguido na esquina, no botequim e no terreiro. O longa representa todo o desdém com que os sambistas da noite são tratados, sendo contrariados até mesmo pela família. Intrinsecamente ligado a religiões de matriz africana, o samba é uma homenagem aos orixás e vítima de intolerância dentro e fora das telas.  

“Samba, a gente não perde o prazer em cantar”. Filho da dor, o samba é refúgio da alma poeta. Curtas Jornadas Noite Adentro soa quase como um documentário sobre o cotidiano de quem tem a música por maior paixão mas é refém de todo um sistema que, além de desvalorizar a cultura popular, a marginaliza. O filme ainda encontra espaço para escancarar a valorização do gênero quando há seu embranquecimento, sendo, assim, o retrato fiel de que o samba agoniza mas não morre!

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