Corpo e Alma: sentimento, a todo custo

#nv

Dentre os indicados à Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2018, The Square talvez seja o mais distante do perfil da premiacão – curiosamente, a vitória da Palma de Ouro em Cannes o torna favorito para arrebatar a estatueta no próximo domingo. Interessante notar, porém, que a selecão na categoria este ano é tao boa que até filmes “do jeito que a academia gosta” são marcantes. Corpo e Alma, representante húngaro, é um bom exemplo.

O primeiro longa-metragem da diretora Ildikó Enyedi em décadas venceu o Urso de Ouro em Berlim e, nas palavras de Paul Verhoeven, deixou os membros do júri apaixonados. Não é díficil entender esse apelo imediato. A trama é simples: dois trabalhadores de um abatedouro, inicialmente distantes, descobrem que estão sonhando a mesma coisa toda noite e então buscam se aproximar. Mária é a uma jovem inspetora de qualidade com comportamento autista, Endre um diretor financeiro de meia idade sem movimentos em um dos braços.

A história é conduzida de forma singela. Além das cenas de sonho intercaladas, o contraste entre o brutal (inclusive gráfico, com direito à abate de gado no início)  e sereno é desenvolvido em ritmo cadenciado. Isso não só fortalece o poder de cada pico emocional, como possibilita leves respiros cômicos de naturalidade peculiar. Uma interpretacão freudiana do filme é obviamente possível, mas parece justo assumir que o foco são as nuances do cotidiano, cada vez mais gélido no mundo de hoje.

O modo como Enyedi retrata a barreira entre virtual e real é dos grandes acertos aqui. Ao contrário da pregacão paranóica à la Black Mirror, mostra situacões corriqueiras sob lentes sensíveis. A fotografia é bastante intimista, com planos médios e fechados alternando entre observacões panorâmicas “do lado de fora” e as visões das personagens. Estas são entregues em grandes atuacões, com destaque para a intensa Mária de Alexandra Borbély (dentre os olhares mais melancólicos do cinema recente) e Réka Tenki, no papel de uma psicóloga desbocada.

Endre e Mária: um match nada convencional via Tinder onírico

Em termos literais, é errôneo afirmar que uma trilha sonora permeia o filme. Uma única cancão é executada quase por inteiro, já na segunda metade do filme; fora isso, apenas alguns trechinhos de música, distribuídos em menos de dois minutos de filmagem. Não deixa de ser curioso o quanto tal proposta é cirúrgica, e extrai o máximo possível – a escolha da cancão fornece carga dramática, e sua montagem dentro da cena impede que descambe para o exagero. Comparando com alguns indicados à Melhor Trilha Sonora Original, como os arranjos melodramáticos de Três Anúncios para um Crime e os drones masturbatórios de Dunkirk, não há lembrar do velho mantra de que, muitas vezes, menos é mais.

É verdade que Corpo e Alma é emotivo ao ponto de dar margem para críticas sobre pieguismo. Mas pouco importa. O ponto aqui é incitar sentimento, e tal missão é cumprida com louvor com a direcão certa: qual modo é melhor para explicitar emocões senão as deixando transbordar? Mesmo que a obra se encaixa nos padrões do Oscar, não se resume à mera isca de premiacões – sua intensidade não é feita sob medida, ou mesmo agradável de encarar. Pode não desbancar The Square no vindouro Oscar, mas seu espaco como romance típico da década de 10 já está garantido na esfera cult e no coracão de quem se deixar emocionar.

 

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