Trama Fantasma: a graça desconfortável de Paul Thomas Anderson

Lucas Marques dos Santos

O cineasta Paul Thomas Anderson comentou recentemente, em conversa com o jornalista Bill Simmons, que não entende por que as pessoas ficam tão sérias assistindo a seus filmes. O diretor não consegue conter a risada, por exemplo, nas conversas melodramáticas do último ato de O Mestre, enquanto o público coça a cabeça em busca de interpretações. Se o humor cruel e escondido na essência é uma marca na estética de Anderson, sua última obra, Trama Fantasma, retira lentamente os fios dramáticos do novelo que se mostra cada vez mais sombrio e absurdo. Não por coincidência o pano de fundo social é a aristocracia e seus rituais, normas e camadas de aparência prontas para serem reveladas.

Daniel Day-Lewis, em sua última atuação antes de se aposentar, interpreta Reynolds Woodcock, um dos maiores designers especializados em vestidos da Londres dos anos 1950. Reynolds mora com sua irmã Cyril (Lesley Manville) na casa que, na maior parte do dia, é local de trabalho para costureiras. Após o insucesso em um romance, simbolizado pelo incomodo com mínimos barulhos durante um café da manhã, o designer volta em férias a sua cidadezinha natal. Em uma manhã a jovem garçonete Alma (Vicky Krieps) desperta o interesse dele.

As primeiras falas de Reynolds direcionada a Alma são os pedidos de um farto café da manhã, de longe a refeição mais alegre e colorida da obra. Após os pratos serem postos na mesa, o estilista a chama para jantar. Ela aceita entregando um bilhete com nome e telefone direciona ao “garoto faminto”. Horas depois, porém, o “menino esfomeado” se contenta apenas em observar Alma comendo sozinha na sala-de-estar e elogiar a qualidade do alimento. Tal mudança brusca no ato de comer – do farto e sedutor ao elegante e contido- é um dos primeiros indícios do caráter tóxico e manipulador de Woodcock. O designer só reconhece que Alma seria sua musa explorada quando, no clímax da noite, Reynalds tira de forma meticulosa e objetiva as medidas da jovem.

O estilista conhece o corpo de Alma pela primeira vez tirando suas medidas. Assim como o espectador, Alma não imaginava essa situação desconfortável.

A alta costura e gastronomia, assim como a etiqueta e o tradicionalismo, são símbolos da elite que permeiam todo filme, participando dos jogos psicológicos e maquiando significados. Em certos momentos a moda se liga a moralidade, quando a casa Woodcock discute quem merece usar suas peças. Um dos principais conflitos do filme é o resgate de um vestido feito para uma aristocrata com problemas alcoólicos. O dever moral de Alma e Reynolds é uma mostra do humor característico de Paul Thomas Anderson, nos quais a nobreza imaginada contrasta com a real superficialidade dos atos.

A aristocracia de Trama Fantasma pode soar antiquada na produção fílmica de 2018. De certa maneira é um filme que apenas Anderson e mais poucos poderiam fazer. Desde o começo da carreira, com Boogie Nights (1997) e Magnolia (1999), o cineasta desenvolveu uma estética sofisticada, repleta de símbolos e partes que se conectam, ainda que acessível comercialmente. Parte do impacto dos filmes de Anderson hoje parece que descende de Stanley Kubrick, com seus conceitos elaborados, subversão de gêneros populares e uma dose de misantropia. Dificilmente o público se simpatiza ou identifica com as personagens, mas a dor e a angústia delas traz algo de humano. Assim como Kubrick, Anderson também viu na elite – um meio do qual o cineasta ficou mais familiarizado com o decorrer da carreira – como uma casca pomposa que esconde hipocrisias.

Mesmo explorando as contradições da cultura de elite, o filme não lança mão de mostrar a beleza e o “amor pela arte” atrás das vestimentas, refeições e decorações, captadas na fotografia assinada pelo próprio Anderson. Para a trilha, o diretor recrutou outro transitante do erudito e popular: Jonny Grenwood, guitarrista do Radiohead e responsável pelas trilhas do cineasta desde Sangue Negro (2007). Em Trama Fantasma a música está em total confluência com a história, ditando o tom de cenas que muitas vezes não possuem diálogos. Um dos momentos mais marcantes do filme se dá quando Woodcock tem uma reação quase vampiresca às luzes de uma festa popular e atravessa a multidão de foliões onde Alma estava brincando como se estivesse em um resgate de guerra.

A comida está em todo lugar no filme. O interessante é identificar como cada refeição funciona na cena.

Até uma parte considerável do longa a convivência entre Reynolds e Alma tem todos os aspectos de um relacionamento abusivo. Sobretudo o filme resgata o mito da era romântica do gênio de nervos fortes e a mulher que o inspira e atura. Se fosse só isso, realmente não precisamos mais de obras que ressaltam uma redenção masculina depois de tanto sofrimento causado. Porém, Trama Fantasma tem suas reviravoltas que alteram completamente a dinâmica.

Os jogos de poder entre o casal principal em certos momentos lembra Professora de Piano (2002), de Michael Haneke: em ambos o lado mais jovem vai quebrando a dominação. Entretanto Anderson não toca explicitamente na questão sexual e não adentra na aversão total ao humano de Haneke. As transições de poder são mediadas por meio dos rituais e modos aristocráticos. Como dito anteriormente, a gastronomia tem papel principal na obra, sendo o motivo para brigas, meio de sedução, entre outras relações.

Uma das cenas envolvendo comida inclusive é um dos típicos “momentos Paul Thomas Anderson”: a chuva de sapos de Magnolia ou a última cena de Sangue Negro, momentos chaves que sempre pegam de surpresa. Enquanto cineasta deve ter rido horrores com o momento chave de Trama Fantasma, o espectador mais abusado apenas esboça uma risada de nervoso. O humor está se escancarado como nunca, mas com a boca aberta de espanto é difícil rir.

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