Coronation é o pesadelo coletivo do qual todo indivíduo gostaria de acordar

O documentário proporciona um mergulho aos bastidores esterilizados do hospital de campanha em Wuhan (Foto: Divulgação Imprensa)

João Batista Signorelli

Caso você não tenha prestado atenção às notícias dos últimos dez meses, ou se o isolamento social já lhe era regra antes de 2020, é importante saber que o mundo vive um momento bastante delicado de sua história: uma pandemia global. Nesse contexto de grande impacto a todos os continentes, o documentário Coronation, dirigido pelo artista multifacetado Ai Weiwei, tem sua estreia no Brasil como Apresentação Especial durante a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nele, Weiwei traz um olhar singular para a experiência de indivíduos durante os primeiros meses da pandemia em Wuhan, além de mergulhar nos bastidores do combate ao vírus, tecendo uma crítica ousada ao governo chinês.

Longe de criar um relato descritivo ou informativo a respeito dos acontecimentos, o artista agrupa registros e experiências pessoais capturadas por colaboradores durante a quarentena na cidade de Wuhan, primeiro epicentro da pandemia. A colagem de experiências individuais sob perspectivas tão diversas agrega ao filme um caráter subjetivo, ou ainda mais, humano. Ao mesmo tempo, foge completamente daquilo que já se tornou o subgênero cinematográfico de ‘filme de isolamento’, ao apresentar certas situações muito mais desafiadoras do que as vividas por um artista qualquer entediado em sua casa. 

Meng Liang, impedido de sair de Wuhan, é apenas um dos muitos personagens a integrar a costura de narrativas em Coronation (Foto: Divulgação Imprensa)

A decisão de focar em experiências individuais não é por acaso. Em um país onde as liberdades individuais são limitadas por políticas unilaterais, a escolha de Weiwei de olhar para os indivíduos não é apenas formal, mas também política. Pode parecer ‘mais do mesmo’, se encarada do ponto de vista da nossa cultura ocidental tão individualista, mas para alguém que teve a voz e a liberdade cerceados em seu próprio país, é um posicionamento mais do que necessário. 

As narrativas individuais fazem um contraponto às cenas em que há um número grande de pessoas. Estas causam quase que uma reação de riso involuntário, reforçado pela trilha sonora um tanto cômica, que parece caçoar dos grupos mostrados, estejam eles prestando juramento ao comunismo chinês, ou executando uma constrangedora dança que ensina o que parece ser o passo a passo de como lavar as mãos. Aqui, ele não visa criticar os coletivos – uma vez que este, assim como trabalhos anteriores, são frutos de um trabalho colaborativo assinado por Weiwei – mas sim o controle e a mentalidade unicamente coletivista imposta pelo estado.

“Mas qual o prejuízo que essa imposição seria capaz de causar?” poderia-se perguntar; e é aí que os registros pessoais ganham força. Um trabalhador que vai para Wuhan trabalhar na construção relâmpago do hospital de campanha e passa a se “alojar” em um estacionamento subterrâneo após ser impedido de sair da cidade devido à quarentena, ou ainda um homem preso em um labirinto de burocracia estatal por não conseguir recuperar as cinzas do próprio pai morto pelo vírus são alguns exemplos. São relatos que provocam o senso comum e chamam atenção para problemas que a princípio seriam invisíveis. 

Provocativo e humano, Ai Weiwei é um artista que nunca foge da atualidade em suas obras (Foto: Divulgação Imprensa)

Indo para além dos personagens, Coronation realiza um mergulho nos bastidores do enorme hospital de campanha construído na cidade. Após um trâmite pelos longos corredores e os extensos procedimentos de higienização para a entrada na UTI, temos acesso também aos procedimentos realizados com os pacientes, em um cenário esterilizado que parece saído de um filme de ficção científica. E diante de tanto sofrimento nesse cenário quase apocalíptico, resta apenas a sensação de incredulidade diante do presente.

Coronation oferece um olhar singular para as contradições de um país que é eficiente para combater uma pandemia, mas que neste processo ignora tantos problemas mais específicos que vêm a surgir no meio desse caminho, além de calar quem venha a criticar suas ações. É um documentário provocativo e ao mesmo tempo sensível e humano quando necessário, cuja atualidade é tanta que só a leitura do título já acusaria o pleonasmo. Mal posso esperar o dia em que acordando desse pesadelo, sua relevância passar a ser unicamente a de documento histórico: um documento importante certamente, mas que não venha nunca a receber o status de ‘atual e relevante’ outra vez. 

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