Ludmila Henrique
As pessoas definem o passado como um acontecimento deixado para trás, um evento constituído por esquecimentos perdidos e, outras vezes, encarregado de voltas eternas às mesmas memórias. A nostalgia presente nele é recorrente em diálogos sobre o primeiro beijo, desavenças no período escolar, ouvir pela primeira vez um solo de guitarra durante um show de rock, ou talvez, o dia do baile de formatura. Outrora, para certas almas, o passado se encontra incorporado em uma pessoa, e às vezes, em um lugar. Em Cobra Kai, após 32 anos das finais do campeonato All Valley de karatê, os destinos de Johnny Lawrence (William Zabka) e Daniel Larusso (Ralph Macchio) se esbarram novamente nos tatames do torneio. Mas dessa vez, unidos como aliados.
O desfecho da terceira temporada deixou os espectadores famintos pela continuação, já que os roteiristas Josh Heald, Jon Hurwitz e Hayden Schlossberg permitiriam deixar numerosas questões em aberto para essa nova fase do seriado. A volta de John Kreese (Martin Kove) na liderança do dojo Cobra Kai, a saída de Robby Keene (Tanner Buchanan) do reformatório, a viagem de Larusso para Okinawa e a luta final entre os alunos do karatê Miyagi-Do em conjunto com os alunos do Eagle Fang, culminaram para que a sequência se tornasse a melhor em questão de escrita da trama – até o momento.
Apesar da grande espera, obviamente a dinâmica entre Lawrence e Larusso não funcionou de uma temporada para outra, ainda que os dois estejam dispostos a se unirem para derrotar John Kreese no campeonato final e retirar ele do posto de líder do Cobra Kai. A primeira aula deles trabalhando juntos foi nada mais, nada menos, do que desastrosa. Além das diferenças individuais, ambos ensinaram princípios e filosofias distintas para seus pupilos. Os alunos do dojo Miyagi-Do aprenderam a se defender e a encontrarem um equilíbrio interior, enquanto os antigos aprendizes do Cobra Kai, que juraram lealdade ao sensei Lawrence e se uniram ao Eagle Fang, foram instruídos a acertar primeiro, utilizando sempre uma sequência de ataques quase perfeitos.
Levou um tempo para perceberem que a melhor alternativa para o desenvolvimento dos alunos seria a troca de professores. Os integrantes do Eagle Fang foram treinados por Daniel, enquanto os alunos do Miyagi-Do foram liderados por Johnny. Na teoria, esse plano tinha tudo para funcionar, porém, ambos tiveram que lidar com a rivalidade que foi construída entre os próprios discípulos. Uma rivalidade ensinada e repassada através dos senseis, viabilizando uma certa descrença na metodologia de ensino que o outro mentor aplicasse.
Enquanto Daniel Larusso e Johnny Lawrence procuram superar suas diferenças, a mente engenhosa de John Kreese (Martin Kove) não parou de funcionar nem por um segundo. Sabendo que a união inevitável de seus rivais poderia ser letal para sua derrota no final do campeonato, Kreese procurou reforços. Gradualmente foi apresentado para o público quem iria se tornar o aliado de John nessa jornada. A figura de Terry Silver (Thomas Ian Griffith) já estava sendo prevista pelos fãs desde a terceira temporada, justamente por ser uma personalidade muito presente na narrativa do personagem interpretado por Kove.
Em Karatê Kid III – O Desafio Final, Terry Silver teve sua primeira aparição como antagonista do filme, sendo apresentado como co-fundador do dojo Cobra Kai e ex-soldado do exército americano, lugar na qual ele conheceu seu amigo e aliado, John Kreese. Posteriormente à vitória de Daniel e Sr. Miyagi (Pat Morita) no torneio All Valley em 1984, Kreese perdeu seu status como sensei e consequentemente seus alunos, o fazendo desapossar seu dinheiro investido na academia e também seu dojo. Terry foi a personalidade que estendeu a mão para ajudar Kreese a se reerguer e também a mente por trás do plano de quebra de amizade entre Larusso e Sr. Miyagi. A ideia inicial era se aproximar de Daniel e debilitar seu equilíbrio interno e, consequentemente, com o emocional já abalado, o enfraquecer fisicamente.
Um dos grandes motivos das lutas finais de Karatê Kid serem tão marcantes, sempre surge de um pretexto anterior. A velha proposta entre os senseis, de cessar as batalhas e adiarem a luta até o final do campeonato de karatê, não é nem um pouco original. Mas ainda se aplica muito bem para o spin-off de um dos maiores clássicos dos anos 80, e, pela primeira vez, essa oferta foi imposta na série, prometendo batalhas ilustres e impensadas pelos espectadores.
Com as alianças formadas, a dinâmica entre os alunos também foi afetada. Parte dos estudantes eram rivais e participaram da grande luta no West Valley High em lados opostos, mas agora, eles precisam encontrar uma forma de estabelecer uma convivência harmônica e deixar as diferenças de lado. Porém, com o final da terceira temporada, foi confirmada a ida de Robby Keene para o Cobra Kai liderado por John Kreese e surgiram algumas especulações das prováveis consequências dessa união.
Diferente do ano anterior, Keene se encontra cada vez mais lúcido dos eventos que ocorreram após sua liberação da condicional. É claro que ele não está feliz com a situação e têm passado os dias como um lobo solitário, adotando cada vez mais um caráter sério e desconfiado. Sabendo dessa situação, outra presa estava sondando o garoto por um bom tempo. Havia uma onda de incertezas sobre como o jovem iria se sair nesse novo dojo – já que ele foi o primeiro aluno da nova geração do Miyagi-Do – e também por Terry e John serem especialistas em lavagem cerebral de adolescentes. Mas, apesar dessa aproximação, Robby parece focado em seguir seu próprio caminho para derrotar o Miyagi-Do e o Eagle Fang, ao invés de ser um novo fantoche para Kreese, assim como seu pai foi.
Assim como nas outras temporadas, parte das gravações segue majoritariamente em Los Angeles, cidade no estado da Califórnia e em várias cidades do estado da Geórgia – Atlanta, Marietta, Union City, Conyers e Peachtree City. A fotografia da série se manteve familiar, não se diferenciando das sequências anteriores. Mas evidentemente, pelo início das filmagens ainda serem no contexto da pandemia de covid-19, houve uma preferência por cenários ao ar livre para construção da trama. Justamente por isso, o ponto chave dos treinos entre o Eagle Fang e os alunos do Miyagi-do foi ambientado no clássico jardim do Miyagi-Do dojo, originalmente casa do Sr. Miyagi (Pat Morita).
Fora as rivalidades que já foram estabelecidas durante três temporadas do seriado, obviamente, os roteiristas acharam um espaço para um novo conflito. O personagem Anthony (Griffin Santopietro), filho mais novo de Daniel Larusso, ganhou destaque nesta quarta, sendo um gancho principal para a narrativa do novato em West Valley High, Kenny Payne (Dallas Dupree Young). Embora seja um rosto novo na trama, a trajetória de Kenny já garantiu confrontos e reviravoltas de grande relevância para a série. Temas como bullying e cyberbullying estão presentes em sua construção, desde os primeiros minutos de sua aparição na franquia. Mas o mais surpreendente é que grande parte dessas ações contra o calouro foram executadas pelo mini-Larusso e seus amigos.
Todo o desenvolvimento de Payne na série é nostálgico. A situação onde Kenny e Anthony se encontram é muito similar com a narrativa de Daniel e do Johnny no primeiro filme de Karatê Kid. Ambos são interessados na mesma garota, o que desencadeou uma disputa entre eles. Contudo, ainda que semelhantes, o final foi bem diferente do prosseguimento do filme. As similaridades entre Daniel e Kenny se resumiram apenas no triângulo amoroso, e grande parte desse afastamento de narrativa foi propiciado pela presença de Kreese e Tery na vida de Payne.
Da mesma forma que Kenny e Anthony, outros personagens se encontram apaixonados na série. Depois de três temporadas, finalmente o casal Carmen (Vanessa Rubio) e Johnny aconteceu, personagens que se conheceram na primeira fase do seriado e tiveram uma química desde o início. Eles já haviam saído algumas vezes e era óbvio o interesse dos dois, no entanto, alguns acontecimentos, como a lesão de Miguel e o fato de Lawrence ser o sensei dele, fizeram que o namoro demorasse mais do que o esperado.
Keene e Tory Nichols (Peyton Roi List) também se aproximaram nesta temporada, de forma nova, mas não surpreendente. Até o momento, eles apareceram poucas vezes como aliados no enredo da série, mas sempre foram um dos casais mais aguardados pelo público. Ainda que recente, a química entre Robby e Nichols é perceptível logo de cara. A interação entre os dois é algo muito além do que apenas um flerte, ambos possuem um vínculo diferente das suas ligações anteriores com Miguel Diaz (Xolo Maridueña) e Samantha Larusso (Mary Mouser). Que eram relacionamentos claramente unidos pela amizade e a paquera inicial, mas também pela situação da primeira opção deles – que para Diaz era Sam e para Sam era Miguel – não estarem disponíveis naquele momento.
Outros casais também foram apresentados no decorrer do seriado. Os queridinhos, Miguel e Samantha, não tiveram grandes momentos de tela – tirando o baile de formatura – nesta quarta fase, diferente dos anos anteriores. Mas depois das brigas e das conciliações, os dois seguem sendo um par e parecem ter criado um laço forte desde a terceira temporada. Fora eles, também temos a confirmação do namoro entre Demetri (Gianni DeCenzo) e Yasmine (Annalisa Cochrane), um relacionamento que surgiu de forma inusitada e pouco explorada na série até o devido momento. E por fim, para alegria de muitos, foi dada aos poucos a premissa da reconciliação entre Falcão (Jacob Bertrand) e a personagem Moon (Hannah Kepple), que acabam se aproximando no torneio final. Mas a volta do relacionamento em si, continua sendo algo a se esperar nas próximas sequências de Cobra Kai.
Falando sobre musicalidade, é impossível não enaltecer o trabalho realizado pelos compositores Leo Birenberg e Zach Robinson. Já nos primeiros segundos de It’s Karate Time, somos diretamente transportados para o universo de Karate Kid ou simplesmente para outro filme dos anos 80 que haja heavy metal, hard rock e pop em sua trilha sonora. Os solos de guitarra, bateria e teclado se assemelham a grandes clássicos da época, como You’re The Best, Young Hearts e Cruel Summer. A nostalgia desses clássicos em combinação com um som atual descreve exatamente o que Cobra Kai procura trazer para o público: um encontro entre gerações.
Um diferencial de Cobra Kai, é o modo que a soundtrack denuncia a personalidade e o gosto musical de seus personagens. Nos momentos de tela de Johnny Lawrence – um ex-valentão, com personalidade forte e às vezes meio babaca – bandas como Poison, Twisted Sister e Queen são recorrentes na construção da série, principalmente nas cenas de brigas em bares ou quando conduz o seu Dodge Challenger pela grande Los Angeles. Agora, nas cenas de Daniel, é possível perceber uma outra versão das músicas 80’s. São baladas melódicas e românticas, extremamente compatíveis com o perfil de Larusso. A banda Chicago, liderada pelo Peter Cetera, é um exemplo de artista que percorre em sua mixtape e também um grande marco nas listas de love songs do YouTube.
Esse encontro de gerações não se encerra apenas nos anos 80, ela também está presente em artistas dos anos 2000. Vencedora em 2004 do reality American Idol, a cantora e compositora Carrie Underwood realizou uma ilustre participação na série, ao cantar o The Moment of Truth durante o torneio final de karatê. A cantora do hit Before He Cheats adicionou um frescor para a música originalmente escrita pela banda de rock Survivor. Canção já presente na franquia de filmes do Karatê Kid e com a nova colaboração, se encaixou perfeitamente na cena apresentada.
Seguindo com a narrativa dos personagens, o alecrim dourado de Johnny Lawrence, Miguel Diaz, encontra-se muitas vezes em segundo plano nesta quarta fase do seriado. Miguel não perdeu sua importância na série e continua sendo o antagonista carismático que ele sempre foi, porém, por ser um dos focos principais desde a primeira temporada, os roteiristas procuraram fortalecer a narrativa de outros personagens que anteriormente eram como peões no enredo de Diaz. Miguel aparece em cena muitas vezes questionando sua trajetória de vida e também preocupado em relação ao seu futuro, como as admissões na faculdade, o próprio torneio e também algumas questões familiares, como o namoro recente entre sua mãe e Lawrence, fora as perguntas sobre suas origens e a falta da presença de seu pai em sua vida.
Todavia, diferente de Miguel, Samantha parece muito direcionada nos seus objetivos, que no caso seria ficar mais forte e vencer Tory no campeonato. Seu foco principal é proteger sua família, amigos e a si mesma. No início ela questionava os métodos de ensinamento de Johnny, mas, com o tempo, ela passa a entender que aprender o estilo de luta do Eagle Fang é uma ótima oportunidade de aprender novas formas de atacar e também de vencer a batalha final. Seu convívio com Nichols continua não sendo um dos melhores, o que é bem compreensível depois da sequência de confusões que aconteceram desde o momento que elas se conheceram. Ainda que haja muitos atritos na relação das duas, certas deixas dos roteiristas nos fazem acreditar que essa rixa entre elas está por acabar, ou talvez, de agravar ainda mais essa situação.
Falando em destaque e evolução entre os personagens, temos a menina dos cachos de ouro, Nichols, como foco principal. A loirinha fez de tudo e um pouco mais nessa temporada. Além de sua aproximação com Robby e as brigas com Sam, a jovem foi uma das personalidades mais importantes para a trama da série. Ela sempre está envolvida com um conglomerado de acontecimentos ruins e procurou resolver eles de maneira solitária, mas, dessa vez, foi apresentado para o público uma versão mais aberta de Tory, com suas questões e também sucinta a pedir ajuda de terceiros. O ato de requisitar ajuda não a fez menos durona por isso – já que estamos tratando da vida de uma adolescente – na verdade, essa atitude compartilhou uma das várias camadas que personagem tem e que foi muito acolhida pela audiência, justamente por ser aproximar a trajetória de Nichols com a realidade do público alvo.
Outro personagem importante nessa temporada é Eli Moscowitz. De todos os papéis apresentados, o desenvolvimento de Eli é um dos mais trabalhados no seriado. De bom moço para garoto problema, Falcão passa por bons bocados ao tentar se redimir pelas suas ações não muito legais com os alunos do Miyagi-Do. Apesar de Jacob Bertrand ser perfeito para o papel de valentão – além de ilustre em uma das cenas mais pesadas da terceira temporada – seu personagem, Hawk, retorna a ter certas indagações e inseguranças sobre si mesmo, algo que não é presente no roteiro desde o lançamento do seriado.
Uma das concepções mais interessantes sobre Falcão, é o fato dele ter passado pela famosa jornada de herói presente nas histórias em quadrinhos. Ele percorre os três pontos principais desse tipo de narrativa. De garoto tímido para herói, de herói para vilão e de vilão para sua redenção. Uma escrita clichê, mas que foi executada da melhor maneira possível. Outra particularidade de Moscowitz foi a circunstância dele ser a única figura da trama a ter participado dos três dojos principais. Ele inicia como aluno do Cobra Kai, transita pelo Eagle Fang e encerra sua jornada no dojo Miyagi-Do, lugar na qual ele já atacou diversas vezes.
Sua saída de carro-chefe do YouTube Premium para uma das maiores plataformas de streaming do mundo foi benéfica em muitos sentidos. O investimento realizado na terceira temporada pela Netflix garantiu um sucesso estrondoso de audiência. Entre dezembro e janeiro, a nova sequência tornou-se uma das produções mais assistidas no streaming, acumulando cerca de 2.4 bilhões de minutos vistos ao redor do mundo. Os produtores executivos Josh Heald, Jon Hurwitz e Hayden Schlossberg conseguiram, com a história de Johnny e Daniel, ultrapassar grandes nomes da Netflix, como a série de fantasia The Witcher (1.8 bilhões).
O sucesso da narrativa não se limitou em apenas garantir números altos de visualizações do público, mas também se fez presente em premiações. Após ser indicada para seis categorias no Emmy 2021, a quarta temporada de Cobra Kai, lançada no final de dezembro, foi uma das indicadas ao prêmio de Melhor Elenco de Dublês em Série de TV no SAG Awards 2022 e disputou a estatueta com grandes projetos, como Loki e Falcão e o Soldado Invernal, lançadas pela plataforma de streaming Disney+ e também a famosa sul-coreana, Round 6, que levou o prêmio.
Uma coisa que os produtores de Cobra Kai sabem fazer perfeitamente é causar intrigas e rivalidades. Porém, a quarta fase da série foi muito marcada pela conciliação e autoconhecimento dos personagens. Assim como as palavras de Daniel no início da temporada: “Muitos de nós éramos inimigos, mas as rivalidades não precisam ser eternas”. E dessa maneira, o enredo de Cobra Kai se afirma. Apesar de ser comum algumas séries perderem a força após três temporadas, isso não ocorreu aqui. De forma surpreendente, a produção da Netflix desencadeou um roteiro nada óbvio e garantiu o desenvolvimento de, no mínimo, mais duas sequências.