Gabriel Oliveira F. Arruda
É bem possível que estejamos entrando em um período de ouro para as adaptações de videogames na Televisão: embora o Cinema ainda sofra para traduzir narrativas interativas para filmes de duas horas, vemos cada vez mais exemplos de como estruturas serializadas são capazes de realizar essa transição incólumes. Arcane, da Netflix, conseguiu transformar a poderosa mitologia de League of Legends em uma das melhores séries do ano, construindo uma trama emocionante sobre desigualdade e opressão em cima de um jogo de estratégia competitivo, enquanto a versão de The Last of Us para a HBO promete estar na vanguarda da temporada de premiações de 2023.
Porém, ainda em 2021 tivemos um novo e último capítulo para a série que provavelmente deu início à essa moda. Na quarta temporada de Castlevania, diversos arcos são concluídos e a busca de seus protagonistas para acabar com o mal de uma vez por todas chega ao seu final climático. A adaptação da icônica franquia de jogos da Konami que empresta parte do nome ao gênero metroidvania foi desenvolvida pelo estúdio Powerhouse, que desde então vem provando sua excelência no meio com projetos como O Sangue de Zeus e Mestres do Universo: Salvando Eternia. Após uma humilde primeira temporada com apenas quatro episódios, a trama do seriado rapidamente se expandiu para uma verdadeira saga de poder e mitologia vampírica.
Embora nem sempre tenha seguido a linha dos jogos que a inspiraram e seu próprio criador, o roteirista Warren Ellis, ter admitido nunca nem tê-los jogado, a série jamais deixou de homenagear seu material original, de pequenas e grandes maneiras, que evidenciam o amor de sua equipe pela obra. Ainda é muito cedo para decidir como é a melhor maneira de adaptar videogames (um meio obrigatoriamente interativo) para o formato audiovisual, mas Castlevania faz um ótimo argumento para o modelo episódico, tomando liberdades narrativas e visuais, usando as bases de sua estrutura como ponto de partida para contar histórias inteiramente novas.
Com o set-up perfeito ao final da primeira temporada, o segundo ano logo parte para águas desconhecidas ao apresentar a corte de Drácula (Graham McTavish), composta não só por grandes e temíveis vampiros-generais sedentos pelo sangue da vingança do Conde, mas também por dois humanos, Isaac (Adetokumboh M’Cormack) e Hector (Theo James), que têm suas próprias razões para auxiliarem o projeto de extinção da humanidade. Juntando isso à chegada de Carmilla (Jaime Murray), a misteriosa vampira da Estíria com seus próprios planos para a raça humana, e o núcleo político de Castlevania logo se torna um dos mais engajantes da série, repleto de maquinações e reviravoltas que revelam suas personagens e provém um insight mais profundo sobre seu antagonista principal e suas reais motivações.
O segundo ano do seriado revolve ao longo de dois eixos que se atraem para um único confronto e, embora o núcleo da corte de Drácula seja o que oferece maior dinamicidade, é na companhia de Trevor (Richard Armitage), Sypha (Alejandra Reynoso) e Alucard (James Callis) que a produção encontra seu verdadeiro coração melancólico. Inicialmente unidos apenas pela necessidade de matar Drácula antes que ele complete sua terrível missão, o trio ganha familiaridade conforme as pilhas de corpos de demônios se acumulam ao seu redor, e essa intimidade se faz mais evidente na maneira coordenada com que lutam nas elaboradas cenas de ação do que em qualquer diálogo.
Castlevania transforma essas cenas em expressões visuais macabras dos elos entre seus personagens através da animação da Powerhouse, altamente inspirada tanto pela estética de animes quanto pelas ilustrações da artista Ayami Kojima, tão inerentes aos jogos da série quanto suas próprias mecânicas. A série sempre teve uma inclinação para exagerar o efeito para acentuar suas causas, algo que até mesmo explica o porque vemos tão pouco de alegria na vida das personagens antes que elas sejam tiradas de lá; porque precisamos apenas da reação de Drácula à morte de Lisa (Emily Swallow) na primeira temporada para entender a dimensão de seu amor e, consequentemente, de sua perda.
Onde tantas outras adaptações de jogos tropeçam, Castlevania se sobressai: ao invés de tentar condensar horas de jogabilidade em algumas poucas cenas de exposição, a animação tenta ao máximo expressar a liberdade inerente a um meio interativo por meio da causalidade das ações de suas personagens, se interessando mais em diálogos que construam o aqui e o agora do que o passado imediato. Nas poucas ocasiões que somos submetidos a um flashback, há uma qualidade quase teatral no texto de fazer evidente sua tragédia antes mesmo que nós tenhamos tempo para processá-la por completo, culminando no final agridoce da temporada, em que, para mal ou para bem, o trio completa sua missão.
O conflito de pai e filho entre Drácula e Alucard amarra esse fim com os laços estabelecidos entre as personagens até então, além de suprir o potencial mítico da história, que faz questão de terminar não com glória, mas com um grito de terror e sofrimento. A beleza da animação contrasta com a brutalidade dos golpes dados e recebidos por cada um dos vampiros, ao ponto que é difícil dizer quem está vencendo ou perdendo. Em uma temporada marcada pela promessa de dar fim ao mal, Castlevania tem o bom senso de terminar em um silêncio antecipatório, já que muitas das peças continuam no tabuleiro e o jogo não parece nem um pouco perto de acabar.
Nesse embalo, tanto a Valáquia quanto a terceira temporada precisam arcar com o vácuo de poder deixado pelo vampirão, o que não é um trabalho nem um pouco fácil, já que não parece haver falta de loucos tentando trazê-lo de volta a vida por meio de rituais pagãos e misteriosas influências celestiais. Separados de Alucard, Sypha e Trevor começam a explorar seu jovem romance ao mesmo tempo que viajam pelas estradas do país matando as Criaturas da Noite remanescentes do exército de Drácula e caindo no meio da intriga entre os monges de um secto radical e o Juiz (Jason Isaacs) do pacato vilarejo de Lindenfeld. Lá, a série tenta injetar alguma nuance na passagem entre o secular e o místico, mas logo volta a concluir aquilo que já sabemos desde o início: o mal é capaz de tomar muitas formas
Alucard, enquanto isso, lida com a solidão de seu novo endereço, preso entre a imponência terrível do castelo de Drácula e os mistérios enterrados do porão dos Belmont, numa metáfora pouco sutil de sua condição de meio-vampiro, mas que faz um bom trabalho em refletir sua existência partida e tortuosa. O filho do Conde aceita o pedido inusitado de dois estrangeiros para ensiná-los a enfrentar os vampiros que oprimem suas terras e, na busca por se separar da figura maníaca do pai, acaba redescobrindo seus próprios sentimentos sobre a humanidade.
Mas a estrela da terceira temporada não é ninguém menos do que Carmilla. A rainha da Estíria e seu pequeno Conselho das Irmãs formam o cerne do núcleo político deste capítulo, que se dedica a caracterizar o seu plano ambicioso para assegurar o futuro de sua raça. Muito longe da insanidade do antagonista anterior, Carmilla e suas companheiras têm planos mais elaborados, mas não menos cruéis, baseados em motivações tão compreensíveis quanto as dele. O relacionamento entre Lenore (Jessica Brown Findlay) e Hector é um dos pontos chave da sequência de maquinações que compõem o clímax tríplice da temporada.
Em julho de 2020, mais de um ano antes do lançamento da quarta e última temporada da série, um coletivo de mais de 60 mulheres e indivíduos não-binários denominado So Many of Us lançou uma carta aberta acusando o criador Warren Ellis de comportamentos inapropriados, manipulativos e predatórios durante sua carreira, se utilizando de sua influência como escritor para pressioná-las em relacionamentos. À época, ele já havia terminado seu trabalho nos roteiros da quarta temporada, mas a Netflix eventualmente confirmou que ele não faria parte da sequência planejada para a produção.
Apesar do roteirista ter pedido desculpas publicamente (tentando convenientemente negar sua própria influência como autor best-seller), ele apenas entrou em contato com o coletivo em agosto de 2021 para iniciar o processo de reparação. Após o choque inicial das alegações e suas repercussões na carreira profissional de Ellis, os irmãos Sam e Adam Deats viraram a nova face pública de Castlevania. Responsáveis, entre outros aspectos, pela direção e produção dos episódios, eles foram a escolha perfeita para ocupar o lugar do roteirista na promoção da quarta temporada, dado seu amor pela franquia de games.
Muitas vezes elogiada por sua caracterização e variedade de personagens femininas bem como a apreciação do female gaze, aspectos desenvolvidos em muitas áreas de sua produção, a série não é apenas definida por seu roteirista. Ao mesmo tempo, não podemos (ou sequer devemos) separar o artista de sua obra, por mais difícil que seja aceitar a influência que Ellis teve na concepção de seu mundo e de suas personagens. Se tem uma constante em Castlevania, é a angústia de viver em um mundo traiçoeiro que se volta contra você, de repente e sem aviso.
Nesse clima agridoce, a quarta temporada estreou em março de 2021 com mais 10 episódios de violência sangrenta e melancolia gótica, encontrando tantos os heróis quanto os vilões em estado de crise: Trevor e Sypha mal conseguem conter as tentativas de ressuscitar Drácula, ignorantes dos planos cada vez mais impossíveis de Carmilla, auxiliada a contragosto por Hector. Alucard, mais sozinho do que nunca, tenta manter as pessoas longe do castelo enquanto atende um pedido de ajuda urgente. Todos estão exaustos e toda vitória parece apenas atrasar o inevitável num mundo regressando cada vez mais e sem sinal de que vai parar.
Seguindo a linha das temporadas anteriores, a maior força do final de Castlevania continua sendo sua habilidade de tecer tramas e personagens complexas ao redor de umas das outras, trançando seus arcos narrativos para cruzarem no ponto de maior impacto, quando a audiência está preparada e ansiando para o espetáculo de animação que se seguirá. No entanto, nos últimos capítulos do seriado essa insistência em segurar o melhor para o final se prova detrimental para a conclusão de alguns de seus arcos secundários, que chegam ao fim sem a pompa adequada à qualidade de seus personagens.
Embora regularmente introduza visuais cativantes e mais alguns personagens marcantes, como a valente humana Greta (Marsha Thomason) e o hilário vampiro londrino Varney (Malcolm McDowell), que complementam as narrativas já estabelecidas, Castlevania foca em retornar às suas origens e ao cerne dos defeitos de seu mundo catastrófico, fechando seu ciclo com familiaridade, apesar de ainda guardar algumas surpresas e revelações em sua reta final. Castlevania: Nocturne, revelada durante a Semana Geeked 2022, promete explorar algumas dessas ramificações, agora focando em futuras gerações de vampiros e caçadores de monstros.
Apesar da história de Castlevania inevitavelmente girar em torno de Drácula e das batalhas e maquinações que irão decidir o futuro de vampiros e humanos, seu melhor personagem se desenvolve muito longe de tudo isso. Isaac, que ao final da segunda temporada havia jurado prosseguir (e até mesmo expandir) a vingança do Conde, parte em uma jornada que, espelhando aquela que Lisa imaginava para seu marido no início da série, irá fundamentalmente mudá-lo. Motivado por seu sofrimento, é difícil para Isaac ver algum futuro para a humanidade que não seja a destruição, e com razão: o personagem nunca deixa de ser moralmente complexo e os grandes acontecimentos que mudam sua perspectiva são sempre diálogos com pessoas tão complexas quanto ele – e, quase sempre, pessoas negras.
Elas mostram a ele que, apesar do mal, ainda há espaço para gentileza e bondade na raça humana, e que não há sentido em querer seguir uma história que não seja a sua. Ao final da terceira temporada, Isaac segue um desses conselhos e confronta um feiticeiro que havia escravizado mentalmente toda a população local para construir uma cidade, usando uma magia que curiosamente toma a forma de uma coroa de espinhos. Enfrentando-o com seu próprio exército de Criaturas da Noite, Isaac é capaz de resistir e quebrar o feitiço, ganhando acesso a um espelho capaz de levá-lo à Estíria e se vingar da traição de Carmilla e Hector.
E no que é talvez a jogada mais acirrada do roteiro até então, ele não o faz. Ao invés disso, seu motivo para eliminar Carmilla não é tão diferente do de nossos heróis para matar Drácula. Mais da metade de sua participação na série se dedica a revelar uma condição humana ainda mais profunda que a dor ou a crueldade: a esperança. Quando Hector acha que Isaac está lá para matá-lo, ele facilmente rebate que “Vingança é algo para crianças”. Em sua última cena antes da conclusão climática da série, ele nos presenteia com um sorriso sincero e a promessa de que, aconteça o que acontecer, ele irá viver.
“Recentemente, comecei a pensar no futuro… o que, para mim, é uma novidade, porque nunca pensei que eu teria um. É assim que nos pegam, Hector. Eles nos convencem de que não há futuro. Só existe um eterno agora, e o melhor que podemos fazer é sobreviver até o amanhecer e fazer tudo de novo. Isso não é jeito de viver. E descobri, com alguma surpresa… que estou interessado em viver.”
Castlevania é uma narrativa sobre um mundo violento e cruel, infestado por monstros e abominações de todos os tipos e espécies. Em seu início, achamos que esse mal pode ser eliminado, que podemos combatê-lo e extirpá-lo da terra de uma vez por todas se apenas derrotarmos o próximo chefe, se passarmos para a próxima fase e chegarmos ao final do jogo. Em seus momentos mais derradeiros, a série abraça a estrutura típica de videogames e se delicia em entregar algumas das sequências mais sangrentas da animação recente. Mas, quando a poeira baixa, apenas isso não é suficiente.
No final das contas, temos que fazer as pazes com um mundo complexo e volátil se quisermos salvá-lo. O mal se recusa a ficar morto, e algumas pessoas continuamente tem que enterrá-lo, de novo e de novo. As personagens são consumidas por essa repetição maníaca, pelo menos inicialmente, mas logo tem que perceber que também há, de certa forma, paz nela. Em seus últimos momentos, Castlevania se presta a não se contentar com as soluções simples e deixa as ações de seus heróis e vilões falarem por si só, sem nunca esquecer de nos deixar sentir empatia por ambos.