Big Mouth: a construção de uma identidade e a assustadora chegada da adolescência

Cena da sitcom animada Big Mouth em sua quarta temporada. O cenário da imagem é o interior de um ônibus. No plano principal há três personagens, na parte esquerda da imagem está Connie, uma monstra hormonal, ela está sentada com os pés em cima do banco e a cabeça virada ¾ para a câmera. A personagem está sorrindo, ela é alta e sua cabeça chega à margem superior da imagem, a personagem tem traços extremamente exagerados típicos de cartoons, ela tem um par de chifres amarelos, assim como o resto de seu corpo, um cabelo longo, liso e vermelho escuro amarrado em duas partes, seus braços e pernas são cobertos de pelo marrom e seus pés são de cascos de cavalo. As roupas da personagem são um shorts azul e uma blusa rosa amarrada em cima da cintura. No meio da foto está o personagem Nick, ele é desenhado com sua cabeça e boca extremamente exagerados. Sua expressão é de atenção, ele é pequeno, magro, tem o cabelo castanho, liso e curto, pele branca e olhos azuis. O personagem está usando uma camisa verde claro, shorts azul e tênis roxo. Na parte esquerda da imagem está o personagem Andrew, ele está virado ¾ da frente da imagem para a direita e sua expressão é de tranquilidade. O personagem é branco, tem o cabelo castanho claro, curto e liso, olhos castanhos claros. O personagem usa óculos preto de grau e suas roupas são uma camisa de manga longa roxa e branca e shorts cinza.
O personagem Andrew Goldberg foi inspirado no co-criador da série de mesmo nome (Foto: Reprodução)

Nathalia Franqlin

Finalmente chegou na Netflix a tão esperada continuação de Big Mouth. A série animada de comédia estreou em 2017, surfando nessa onda nova de animações para adultos nas plataformas de streaming. Ela conta com a participação de nomes relevantes no gênero, como seu co-criador Andrew Goldberg, que já participou do roteiro de Uma Família da Pesada. O criador da série, e amigo de infância de Andrew, Nick Kroll, também não é um novato nessa área, ele fez parte do elenco de Festa da Salsicha, que é – de fato – uma predecessora das animações esteticamente infantis, de gosto duvidoso e explicitamente sexuais.

Cada temporada de Big Mouth seguiu o desenvolvimento dos pré-adolescentes, em especial os melhores amigos Nick (Nick Kroll) e Andrew (John Mulaney). No primeiro ano, temos a chegada dos famigerados monstros hormonais na vida dos protagonistas, esse foi o começo do fim, o início da puberdade e o encerramento da infância. A priori, a série chocou e até repercutiu negativamente nas redes sociais entre os mais conservadores, pelo seu linguajar explícito e cenas grotescas. 

Cena da sitcom animada Big Mouth em sua segunda temporada. O cenário ao fundo da imagem é uma sala de estar com dois sofás marrons, uma mesa com velas localizadas ao centro e uma escada no canto direito da imagem. Em primeiro plano, no centro da imagem, está a personagem Leah. Ela está sentada em uma cadeira e virada ¾ para a frente da câmera. A personagem é desenhada com traços exagerados ao estilo cartoon, ela é branca, tem o cabelo loiro e liso preso em trança, olhos azuis, está usando um vestido rosa claro com um colar e anel dourados e uma pulseira amarela.
A segunda temporada da série teve um episódio dedicado apenas para a discussão sobre métodos contraceptivos (Foto: Reprodução)

Já na segunda temporada, a trama perdeu um pouco o fôlego, diminuindo a quantidade de episódios escatológicos e tentando tomar um tom mais didático. Para isso, tratou de temas como ISTs e prevenção sexual, coisa que acabou por deixar Big Mouth cansativa, tediosa e, até mesmo, incoerente, já que, enquanto tomava um rumo educacional, continuava por mostrar de forma imprudente o uso da pornografia

Os anos recentes conseguiram se recuperar do catastrófico segundo. O terceiro chegou com um enredo muito mais interessante, buscando aprofundar os problemas pessoais dos personagens principais e focando na questão da masculinidade tóxica. Finalmente, a cereja do bolo: o quarto ano da série. O melhor até agora, mostrou o amadurecimento da narrativa e dos personagens, agora, adolescentes. Essa foi a única temporada da produção que conseguiu 100% de aprovação no site Rotten Tomatoes

A trama continua com foco nos melhores amigos. Mas, cada episódio desta temporada segue sendo um mais interessante que o anterior, e, apesar de todos  terem um certo nível de autonomia, o roteiro está muito bem escrito, fazendo com que eles trabalhem bem entre si. A quarta parte de Big Mouth não é maçante ou tediosa – como a segunda – não é aquele tipo de série que você assiste, com muita dificuldade, apenas pelo interesse no desfecho no final. Não, agora você vai querer maratonar a temporada toda de uma vez.

O primeiro episódio mostra como estão se desenvolvendo as intrigas geradas no final da terceira temporada com o beijo entre Missy e Nick, que deixou Andrew muito irritado. Este ainda se torna um bullie. Nesse ponto, é interessante como a série consegue desenvolver conceitos pouco materiais por meio de analogias, por exemplo, o sentimento de ódio que Andrew não consegue abrir mão se torna, literalmente, uma dolorosa e furiosa constipação intestinal, dublada por Paul Giamatti.

Cena da sitcom animada Big Mouth em sua quarta temporada. O cenário de fundo da imagem é uma floresta de noite à luz da lua. Em primeiro plano aparecem os personagens Nick e Andrew. Nick está à esquerda com uma expressão de preocupação. Ele tem traços como tamanho da cabeça, testa e boca extremamente distorcidos e exagerados; é branco, com olhos azuis, cabelo curto castanho e está usando uma camiseta branca, shorts azul e tênis roxo. Ao seu lado, está o personagem Andrew, sentado no chão, com uma expressão de grito e shorts abaixado. Andrew é branco, tem o cabelo castanho claro, curto e liso, olhos castanhos claros. O personagem usa óculos preto de grau e suas roupas são uma camisa de manga longa roxa e branca e shorts cinza.
Big Mouth é uma animação em formato de sitcom com classificação indicativa para maiores de 16 anos (Foto: Reprodução)

Logo no início, somos expostos a vários novos elementos e personagens singulares. Temos a aparição de Natalie (Josie Totah), uma adolescente trans. Big Mouth surpreende porque, de maneira geral, séries e filmes  – como o aclamado A Garota Dinamarquesa (2015) – tendem a tratar seus personagens trans como “personagens tipo”, ou seja, personagens extremamente genéricos e muito caricatos de um determinado grupo a ser representado, e sem a efetiva representação de atores e atrizes transexuais no elenco.

Mas não é isso que ocorre  aqui, começando pela atriz que dá voz à Natalie e também é uma mulher transexual. A personagem é uma menina complexa, tem suas próprias questões pessoais e sua personalidade não é apenas mostrar o orgulho trans ou ter um arco sofrido para se aceitar, ela é esperta, adora piadinhas de gosto duvidoso, fica ansiosa e insegura às vezes, mas tenta se mostrar forte e inabalável na maior parte do tempo. Ela é só mais uma pré-adolescente enfrentando grandes primeiras emoções e passando pela puberdade. 

Cena da sitcom animada Big Mouth em sua quarta temporada. No plano principal, centralizado na imagem, temos mais à esquerda a personagem Natalie, ela é mostrada com a cabeça projetada ¾ à direita da foto e sorrindo, o personagem tem traços extremamente exagerados típicos de cartoon. Ela tem o cabelo liso, longo e castanho, olhos castanhos e a pele branca. A personagem está usando uma blusa rosa, shorts verde claro, sapatos azuis e uma mochila azul claro. Do lado direito de Natalie está um outro personagem mais alto, mais branco, com um nariz exagerado. Ele está sorrindo olhando na direção de Natalie. Suas roupas são uma camisa polo verde, uma bermuda marrom, óculos redondo, chinelo cinza e meia marrom. Os personagens estão cercados por outros de menor relevância para a cena. O plano de fundo é o interior de uma cabana.
Na temporada anterior, os produtores de Big Mouth foram acusados de transfobia devido a uma definição errônea; acredita-se que Natalie tenha sido introduzida para corrigir esse erro (Foto: Reprodução)

Aparecendo junto com Natalie, temos Tito (Maria Bamford), o Mosquito da Ansiedade. Ele, sem dúvida, foi mais uma das sacadas geniais da série. Personificar um sentimento, como já havia acontecido antes com a Gata da Depressão (Jean Smart) e o Mago da Vergonha (David Thelwlis), é um dos melhores caminhos para demonstrá-los de uma forma que não vire gatilho para pessoa mais sensíveis, e mantém a proposta da série de explorar a puberdade enquanto “abraça as fraquezas do corpo humano e do sexo”. Tudo isso, claro, mantendo um tom leve e divertido.

Agora, o Mosquito é o responsável pela maioria dos conflitos envolvendo os personagens. Ele é irritante, insistente, não para de falar, sabe das maiores inseguranças de cada um e consegue alimentá-las; não é surpresa que essa seja a motriz do efeito dominó nos conflitos na série. É interessante como conseguimos nos identificar com os personagens quando eles estão vulneráveis pelo Tito, porque, de fato, todos já tivemos problemas com os mosquitos da ansiedade durante a adolescência, essa fase confusa tanto para nós, quanto para os personagens. Esse é, com toda certeza, um dos elementos que deixou essa temporada de Big Mouth tão provocante. 

Cena da sitcom animada Big Mouth em sua quarta temporada. Em primeiro plano, à esquerda, está o personagem Nick Star, ele é mostrado com a cabeça projetada ¾ para a parte frontal da câmera e sorrindo, o personagem tem traços como tamanho da cabeça, testa e boca extremamente distorcidos e exagerados. Ele é um homem branco, magro, de olhos azuis e cabelo castanho curto usando um terno azul claro com uma gravata roxa e camisa branca. À direita está uma projeção holográfica da cabeça do criado robô de Nick. O personagem também é mostrado com a cabeça projetada ¾ para a parte frontal da câmera e com uma expressão neutra. Ele também tem seu rosto desenhado de forma bastante distorcida, típica de um cartoon. O personagem está completamente azulado e aparece usando um capacete e óculos. O cenário principal é o interior de uma nave, com um porta copos centralizado embaixo tocando na margem da cena. O plano de fundo secundário é uma cidade ao alvorecer e com muitos prédios ao fundo.
Nick Birch foi inspirado em um dos criadores de Big Mouth, Nick Kroll (Foto: Reprodução)

Outro personagem que também ganha destaque é o Nick do futuro, ou Nick Starr. Ele não é novo dessa temporada, já havia sido mencionado anteriormente em um episódio do segundo ano de Big Mouth. Mas, agora, ele tem um destaque de super vilão ao estilo Psicopata Americano. Nick Starr é um episódio singular nessa temporada, ele quebra um pouco o ritmo da série e, a priori, pode ser incômodo para aquele que já se sente vidrado ao enredo. 

O capítulo do futuro acontece inteiramente na cabeça do Nick do presente, na forma de um pesadelo. Esse é o Nick completamente tomado por suas inseguranças e medos, ele é solitário, rico, viciado numa droga que o faz ter orgasmos, é narcisista e egoísta. Nesse futuro, há leis ambientais que protegem os mosquitos, todos idênticos ao Tito, e, por mais incômodos que eles sejam, ninguém pode matar nenhum, e também o planeta está entrando em colapso com o apogeu capitalista.

 Cena da sitcom animada Big Mouth em sua quarta temporada. Em primeiro plano, à esquerda, há a personagem Missy, ela é mostrada com a cabeça projetada 3 ⁄ 4 para a parte frontal da câmera e sorrindo. A personagem foi desenhada com traços bastante distorcidos e exagerados, típicos dos cartoons. Ela é uma menina negra, com olhos e cabelos castanhos, usando aparelho, trança, e com um brinco dourado na orelha direita. Sua roupa é uma camiseta amarela que mostra o umbigo e uma calça jeans azul. Ainda no primeiro plano, à direita, há um espelho com as partes quebradas e coladas formando um reflexo fragmentado de Missy. O reflexo é composto por imagens diferentes de Missy no passado. Suas roupas são igualmente fragmentadas, sendo uma parte seu macacão jeans azul, a outra uma blusa azul e a terceira um pedaço de uma blusa moletom preta. A parte da cabeça do reflexo também está fragmentada, ela aparece usando a tiara dourada da mulher maravilha, seu cabelo é curto, crespo e está solto. Seu reflexo também aparece com a cabeça projetada 3 ⁄ 4 para a parte frontal da câmera e sorrindo.O fundo da imagem é verde escuro.
Missy foi a última dos personagens principais a ter sua própria monstra hormonal e entrar na puberdade (Foto: Reprodução)

Esse não é o melhor dos futuros, mas é realista. Big Mouth, apesar de manter o mesmo nível desde o seu início, tomou um tom mais duro e crítico, talvez até mesmo sombrio. Isso é bem coeso, já que vemos esse mundo através dos personagens e, agora, é a vez deles estarem sendo, de fato, adolescentes e não mais pré-adolescentes, a infância morreu de vez. Eles não estão, necessariamente, mais maduros, e sim mais críticos, políticos, revoltados, ansiosos e inseguros.  

Outro ponto chave nessa última parte é a jornada de autoconhecimento de Missy (Ayo Edebiri). Ao final da terceira temporada, ela conhece Mona (Thandie Newton), sua Monstra Hormonal, o que leva ao fim da sua infância. O arco de descobrimento de sua identidade é uma das melhores partes desse ano. Missy é muito doce e gentil, mas precisa se descobrir e aceitar todas as partes de sua personalidade – incluindo a mais ousada e assertiva de todas. As várias Missys, incluindo a Missy revoltada e agressiva, a ajudam a iniciar sua adolescência e a se tornar menos inocente. Esse foi um desenvolvimento muito importante para a narrativa, ela ter ganhado tamanha progressão tornou a trama muito mais cativante. 

Ainda sobre a personagem, por causa do fomento nos debates sobre dubladores brancos dublarem personagens não-brancos, houve uma mudança no elenco dos voice actors. Missy não foi e não será mais dublada pela atriz branca Jenny Slate, agora  a atriz, escritora, comediante e produtora Ayo Edebiri será a porta-voz da personagem. Isso é pertinente também para a subjetividade da trama, já que esse é o momento em que a garota começa a se enxergar como uma pessoa negra e a levantar questões estéticas, sociais e culturais sobre sua auto expressão. Esse é o momento, por exemplo, que ela decide trançar o cabelo. 

Foto de Ayo Edebiri, atual dubladora de Missy na sitcom Big Mouth. O fundo da imagem é uma parede ornamentada com detalhes em roxo e azul, na parede e no centro da imagem está pendurado um espelho redondo com a moldura dourada. Em primeiro plano, no centro da imagem, está Ayo virada de frente para a câmera, ela é uma mulher negra com olhos castanhos, seu cabelo é crespo, curto e preto. Ela usa uma camiseta branca com uma jaqueta preta. Sua expressão demonstra um sorriso leve olhando para a câmera.
Ayo Edebiri disse que um de seus personagens favoritos, além da Missy, é Rick, o Monstro Hormonal velho e decrépito (Foto: Reprodução)

Big Mouth realmente acertou nesta quarta temporada, trouxe elementos interessantes, amadureceu o tom e, finalmente, parou de incentivar o uso da pornografia. A Netflix já renovou a série para o quinto ciclo e, até mesmo, confirmou que haverá o sexto. Com base nas últimas datas de lançamento das temporadas anteriores, é provável que a próxima fique para o final de 2021, entretanto, ainda é possível que haja atrasos na produção em decorrência da pandemia e ela só esteja disponível no início de 2022. Agora, basta esperar para ver se ela vai seguir a evolução da quarta, se manter no nível das primeiras, ou nos surpreender ainda mais.

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