A poesia prevaleceu no adeus de Leonard Cohen

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Nilo Vieira

E 2016 continua impiedoso: começou levando o maior artista da década de 70, depois ceifou a figura mais emblemática da década seguinte e agora levou um dos grandes nomes dos anos 60. Morreu no último dia 7 o poeta, compositor e cantor canadense Leonard Cohen, aos 82 anos de idade e em menos de um mês após lançar seu mais recente álbum de estúdio, o bom You Want It Darker – escolhido por nossa curadoria mensal como um dos melhores álbuns do mês passado.

Embora nunca tenha sido um cantor das massas, não há dúvida que Cohen foi um dos artistas mais influentes de sempre. O seminal grupo The Sisters of Mercy assim se chama graças à uma música de Songs of Leonard Cohen, Nick Cave e seu lirismo fúnebre jamais existiriam sem a poesia coheniana e até Kurt Cobain clamou por uma “pós-vida à la Leonard Cohen” na canção “Pennyroyal Tea”. O DNA de Leonard é palpável em quase qualquer vertente musical sombria após sua estreia, do folk melancólico ao slowcore, passando pelo pós-punk, gótico e indie rock.

Por ironia do destino, sua música mais conhecida só viria a ganhar fama na voz de outros intérpretes. “Hallelujah” precisou primeiro ganhar uma releitura de John Cale, do The Velvet Underground, anos após o lançamento da original e depois ainda cair no conhecimento do britânico Jeff Buckley para então o planeta prestar atenção. Peça constante em trilhas de filmes, seriados e reality shows musicais, a canção é um ótimo exemplo das características mais marcantes de Leonard Cohen: o uso de simbolismos, metáforas complexas e sua inconfundível voz grave. No entanto, tanto a música quanto o álbum a qual ela pertence passam longe de ser a obra-prima deste prolífico músico. Apesar do poder das palavras, a produção recheada de sintetizadores tipicamente oitentistas não envelheceu tão bem.

A disputa por esse título costuma ficar entre sua elogiada estreia, Songs of Leonard Cohen (1967) e o também estupendo Songs of Love and Hate (1971), muito recomendados para quem estiver a fim de conhecer sua obra. Em ambos, os dedilhados certeiros no violão ditam o rumo junto à poesia cinzenta de Cohen, com arranjos de corda e coros vocais dando as caras em momentos pontuais. O amor, tema onipresente em sua obra, é apresentado sobre diversos prismas: platônico, temporário, passado, distante, tenro, religioso. As descrições  de suas musas partem mais de detalhes psicológicos do que físicos, embora esconder líbido nunca tenha sido uma preocupação do poeta (a própria “Hallelujah” que o diga).

Impressiona, acima de tudo, o intimismo com que o tema é tratado em qualquer uma das possibilidades. Ainda que a linguagem não seja sempre fácil para uma interpretação imediata, o que se ouve não é um sujeito garboso declamando versos de modo acadêmico, mas um homem comum, falando diretamente a nós, tentando extrair alguma beleza das tristezas cotidianas. “Entre a marca de nascença e a mancha/ Entre o oceano e a sua veia aberta/ Entre o boneco de neve e a chuva/ Outra vez, outra vez/ O amor te chama pelo nome“, entoa em “Love Calls You By Your Name”. Em outro clássico, “Famous Blue Raincoat”, Cohen literalmente canta como se estivesse redigindo uma carta, incluindo até sua própria assinatura na letra. Uma jogada de mestre.

Outro grande mérito desses dois grandes discos é conseguir captar de modo cristalino a essência do artista, tanto os defeitos como qualidades. Desse modo, sua poesia também transparece aspectos não tão louváveis de sua personalidade, como a possessividade (“One of Us Cannot Be Wrong”), seu lado boêmio agressivo (“Diamonds in the Mine”) e acusações invasivas (“Master Song”). E é justamente por expor essa parte sombria que sua arte é tão poderosa: acima de tudo, ela é humana, imperfeita e fala por si só – vale ressaltar que, nesses quase cinquenta anos de carreira, Leonard foi sempre bastante reservado perante a mídia e, mesmo a sua última e controversa entrevista, onde afirmou estar pronto para morrer, parece não ter dito nada além do que suas composições já tinham deixado subentendido.

Começando sua jornada na música de maneira tardia, Leonard Cohen lançou seu primeiro disco já com 33 anos nas costas. Todavia, a sua real maturidade era de cunho espiritual: como ninguém, entendeu que a melancolia é parte da vida e que a solução não era ignorá-la, mas sim trabalhar em cima até encontrar o sentido de volta para a superfície e traçar um novo caminho. Nesse meio tempo onde a tristeza toma conta de cada indivíduo, o mundo não para e muito menos perdoa, então essa tarefa cabe a cada um antes de voltar de vez para a realidade massacrante. Em “Anthem”, um de seus versos mais marcantes bem define: “há uma rachadura em tudo/ é por onde entra a luz“.

Pode-se então afirmar que, ao longo de sua trajetória, Cohen explorou toda e qualquer rachadura para que a luz pudesse atingir cada canto onde a escuridão encurralava alguém. Não tinha medo do escuro, então aceitou com tranquilidade a sua situação. A idade pesava (“(…) chegamos a esta época em que somos tão velhos que nossos corpos caem aos pedaços”, escreveu em uma linda despedida para uma de suas musas mais famosas, Marianne) e sua missão já havia sido cumprida com louvor. Estava realmente preparado para a morte –  nós é que não.

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Eles prenderam um homem/ Que queria dominar o mundo/ Os tolos/ Prenderam o homem errado (contracapa de Songs of Love and Hate)

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