A Morte do Cinema e do Meu Pai Também: o cinema não morreu

O segundo longa do diretor israelense Dani Rosenberg faz parte da Seleção Oficial do Festival de Cannes (Foto: Reprodução)

João Batista Signorelli 

É no mínimo curioso o fato de um filme com este título venha a ser lançado justamente no ano de 2020, onde redes de cinema caminham para a falência e as salas oscilam entre uma capacidade limitadíssima de espectadores e o fechamento total. E se A Morte do Cinema e do Meu Pai Também poderia estar anunciando nos festivais de cinema online como a 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que essa forma de arte do modo que conhecemos está com seus dias contados, no fim ele acaba fazendo justamente o contrário. A Morte do Cinema e do Meu Pai Também revigora a arte cinematográfica não apenas por suas reflexões pertinentes a respeito do próprio ato de fazer um filme, mas também por ser tão assertivo em encontrar o universal a partir de um lugar tão íntimo e pessoal. 

Resumir a trama do filme israelense em uma sinopse é correr o risco de cometer um ato falho. Trabalhando com várias camadas narrativas, uma dependente da outra, o filme não se coloca como uma experiência fora da realidade ou de difícil compreensão: não é um quebra cabeça a ser decifrado, mas uma boneca russa a ser desmontada. A narrativa ficcional acompanha inicialmente um pai que, após ser alertado de uma iminente bombardeio do Irã, reúne a família para sair da cidade em direção a um lugar mais seguro. Porém o que de início parecia um road movie agradável não leva muito para revelar mais algumas de suas cartas.

A mistura de ficção e realidade além da metalinguagem remetem ao cinema de Abbas Kiarostami e de Charlie Kaufman (Foto: Reprodução)

De repente surge uma equipe de cinema, fazendo-nos perceber que aquela narrativa que acompanhamos até então não passava de um “filme dentro do filme”. Yoel (Marek Rosembaum), o ator principal, não se vê mais capaz de atuar uma vez que o estado de sua doença piora, deixando o diretor Asaf (Roni Kuban) que também é seu filho, com um filme incompleto em mãos. A partir daí acompanhamos as tentativas de Asaf em adaptar o seu roteiro para torná-lo produzível dentro das novas condições de seu pai, cuja saúde e vitalidade vai gradualmente se degradando, tornando cada vez mais improvável a realização do filme. 

Mas se essa narrativa um tanto metalinguística já não fosse o bastante, ela se intercala com imagens reais do pai do diretor Dani Rosenberg, trazendo um aspecto documental inusitado à obra. As imagens de arquivo não apenas ressignificam toda a narrativa ficcional que acompanhamos, como também dialogam de forma a fazer o público perceber que aquela história teve uma origem não tão ficcional assim, surgindo a partir da relação do próprio diretor com o seu pai em seus últimos meses de vida. Além dessas imagens, o filme ainda inclui trechos de vários curtas-metragens realizados pelo diretor em sua juventude e estrelados pelos seus próprios familiares, adicionando mais uma camada à colagem docu-ficcional que é A Morte do Cinema e do Meu Pai Também. 

Indo na contramão de muitos filmes que borram a linha que divide o documental e a ficção, levando o público a questionar constantemente a veracidade das imagens que assiste, A Morte do Cinema deixa sempre muito claro o que é real e aquilo que não é. Trabalhando com três razões de aspecto distintas para diferenciar aquilo que é a narrativa, que é real, além dos curtas produzidos anteriormente pelo diretor. Por outro lado, apenas dentro da narrativa ficcional que o diretor se permite brincar com a nossa percepção de realidade, frequentemente nos colocando em dúvida se aquilo que assistimos é mais um “filme dentro do filme” ou não. 

Exibido na Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional, o filme também está disponível na repescagem do festival, que vai até domingo, 08/11 (Foto: Reprodução)

Mas a força do filme não reside apenas nessa engenhosidade de brincar com as convenções cinematográficas, mas na sinceridade com que trata os personagens e as questões familiares. Asaf passa grande parte do filme obcecado pela finalização de seu filme, a ponto de desconsiderar quem está mais próximo: sua esposa que está prestes a ter um filho, e seu próprio pai, tratado muitas vezes mais como ator do que como ente familiar. Somando-se a isso, Rosenberg opta por manter dentre os registros documentais um momento em que seu pai, incomodado, insiste para que o filho desligue a câmera, o que ele demora a fazer. 

Se a obsessão e a invasão incomodam, elas se encontram aqui com um propósito quase terapêutico. É admirável a coragem do diretor de reconhecer na tela suas atitudes falhas do passado sem se martirizar, e com uma enorme carga empática para com aqueles que estavam em seu entorno e que possam ter se prejudicado de alguma forma com suas atitudes. E ainda que ser filmado contra a vontade pode ser uma invasão inconveniente, garanto que ao escrever essa crítica me sinto tão invasivo quanto, ao me colocar no papel tão pretensioso de analisar aspectos pessoais da vida de alguém, correndo o risco de estar completamente equivocado. 

Roni Kuban e Marek Rosenbaum estrelam como Asaf e Yoel, espelhando a relação de Dani Rosenberg com seu pai. (Foto: Reprodução)

Essa “auto invasão” que o diretor e roteirista faz com sua própria vida pessoal poderia facilmente ter fugido da universalidade tão essencial para o ato de narrar histórias no cinema, mas felizmente não é o que acontece. A Morte do Cinema transborda de identificação e empatia, e a justaposição entre a ficção e a realidade apenas colabora para isso. A ficção adquire um caráter de realidade, não necessariamente por ser fiel aos fatos, mas porque é evidente que vem do coração da experiência de seu realizador. E essa realidade muito presente, seja em imagens de arquivo ou em situações ficcionais, carrega consigo uma carga emocional enorme, se convertendo muitas vezes em risos, outras ainda, em lágrimas. 

A Morte do Cinema e do Meu Pai Também é, por ironia, Cinema vivo como poucos filmes o são. Além de embalsamar para a eternidade a memória pessoal de Dani Rosemberg sobre seu pai, nos recordando da força do cinema em gerar empatia e de se reinventar a todo momento. Os estúdios podem até falir e as salas de cinema podem até fechar, mas enquanto o ser humano puder registrar imagens em movimento, o fazer cinematográfico permanecerá relevante para a preservação da memória e como meio de se contar histórias. E ainda bem que existem filmes como esse para comprovar isso.

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