Humberto Lopes
O ano era 2015 quando em uma terça-feira (13) de janeiro a cantora islandesa Björk anunciou o seu nono álbum de estúdio. O nome era Vulnicura, que significa “Cura para as Feridas”. Um grande título para tratar uma enorme ferida aberta: o término do seu casamento de 13 anos com o artista inglês Matthew Barney.
O lançamento apressado e surpresa na época aconteceu após o vazamento das faixas. As músicas já tinham caído na internet quando ela postou um bilhetinho escrito a mão em suas redes sociais com um entusiasmado “¡¡ senhoras & senhores !!”, a tracklist do álbum e avisando que ele seria lançado em março daquele ano. Mas, sete dias depois, Vulnicura já estava disponível para o mundo inteiro ouvir.
Ali o sucessor do Biophilia (2011) se mostrou ser o trabalho mais denso de toda a carreira de Björk. Os vocais rasgados, os arranjos de cordas feitos pela própria ex-Sugarcubes e o toque inigualável da venezuelana Arca e do inglês The Haxan Cloak fazem com que as letras com intensidade cirúrgica tomem vida com as batidas sombrias e altamente tristes.
Cada canção faz parte do processo de cura do divórcio que se concretizou em setembro de 2013. Por acidente, as seis primeiras músicas do Vulnicura documentam como foi esse período. Stonemilker, a primeira faixa, é de oito meses antes do rompimento, e logo em seguida vem Lionsong, de quatro meses antes. Já a terceira, History of touches, foi escrita um mês antes. A quarta, Black Lake, que eu arrisco dizer que é a mais triste já feita por Björk, nasceu quatro meses depois da separação. Oito meses após o fim do relacionamento veio Family e um ano em seguida vem Notget.
Em entrevista ao jornal O Globo, dias após o lançamento do álbum, ela revelou que não havia planejado que fosse desta maneira. “Quando olhei para as canções que eu tinha, fui me dando conta de que elas eram o registro do ano antes e do ano depois da separação. Então, achei que a coisa mais generosa a fazer era compartilhar isso, dessa forma, com as pessoas”.
Ainda extremamente pessoais, as últimas três faixas são perfeitas para se entender o momento que a islandesa vivia. Atom Dance, que tem a participação do inglês Antony Hegarty do Antony and the Johnsons, que já havia trabalhado com a cantora no Volta (2007), conta com oito minutos intensos de batalha entre voz e instrumentos. Mouth Mantra vem a seguir com o mesmo duelo, como se essas duas músicas fossem uma mistura do Medúlla (2004) com o Homogenic (1997). Ambas unem o uso erudito da voz com acordes bem trabalhados e batidas que dançam com os instrumentos.
Por último, Quicksand fecha o ciclo com uma batida rápida e um tom menos frio. A canção é a mais antiga de todo o Vulnicura, composta em 2011 após a mãe de Björk ter um ataque cardíaco e ficar uma semana em coma. É a única faixa não cronológica, mas que se encaixa perfeitamente no processo de cura que o disco inteiro propõe.
Apesar da intensidade e densidade do trabalho a produção foi rápida. Com o toque da compositora, produtora e DJ Alejandra Ghersi, conhecida como Arca, as batidas que poderiam ter demorado anos foram feitas em meses. Na época Björk revelou que se apaixonou musicalmente pela artista, que já havia trabalhado com Kanye West em Yeezus (2013) e FKA Twigs no LP1 (2014). A parceria entre as duas mais tarde se estendeu ao Utopia (2017), o sucessor de Vulnicura.
Assim como seu antecessor Biophilia o álbum também inovou ultrapassando os limites do convencional com a exploração dos clipes interativos em realidade virtual, que exploraram mais ainda as faixas. A produção híbrida deu uma nova significação ao caráter vanguardista da obra, que logo após correu o mundo na exposição Björk Digital, que começou em 2016 em Sidney e depois passou por Tóquio, Barcelona, Cidade do México, Moscou, Montreal, Londres, Los Angeles, e outras cidades.
A cantora foi uma das pioneiras no uso dos vídeos imersivos em 360 graus para os seus clipes e é uma grande entusiasta do formato e da união entre e a arte e tecnologia. Como uma extensão do peculiar Vulnicura, Björk Digital continua rodando o mundo. Parado no Rio de Janeiro por conta da epidemia do coronavírus, a exposição-instalação passou por São Paulo e Brasília.
Um dos discos mais importantes de 2015, a experiência completa da obra vai muito além do seu tema principal, que é o fim do relacionamento da artista. Reduzir a apenas um álbum sobre o término é fazer uma análise incompleta do trabalho mais complexo, sensível, pessoal e grandioso de toda carreira de Björk.
Expandindo os limites da música, Vulnicura completa seus cinco anos como um dos projetos mais atemporais de toda a discografia da islandesa. Talvez o maior truque da obra seja a overdose de intimidade que o eu lírico se dispõe a oferecer para o ouvinte, fazendo com que o disco se converta em um processo de cura coletivo, e todo sofrimento e excesso de humanidade se torne na fórmula perfeita de um álbum que parece não envelhecer.