Jamily Rigonatto
Existir enquanto uma pessoa LGBTQIA+ é estar cercado de incertezas. Não se sabe em quem confiar, se seus comportamentos estão minimamente condizentes com o que a sociedade espera ou sequer se sua vida, antes de se descobrir, continua fazendo parte de quem você é. Apesar de acontecer de forma distinta para cada pessoa, esse processo sempre vem acompanhado de inseguranças. Retratando esses elementos pela visão do protagonista Jonas, Um milhão de finais felizes explora isso enquanto valoriza o resultado das etapas conturbadas: a cura.
Longe de se tratar de uma espécie de ‘cura gay’, essa descoberta está ligada ao próprio ser, a restauração que acontece em nós quando percebemos que não há nada de errado em ser como somos – seja na esfera da sexualidade, na forma como reagimos à vida ou até sobre a aparência física. Por meio dos receios do personagem, o autor Vitor Martins renova o fôlego de uma juventude que só quer amar e ser amada, sem sentir que o peso do mundo está prestes a desmoronar sobre os seus ombros.
Jonas é um jovem sonhador, deseja ser escritor e acredita que quase qualquer coisa pode dar um bom livro, pelo menos na esfera de seus pensamentos. Mas na hora de efetivamente escrever, trava por sentir que suas palavras não são boas o suficiente (mais uma de suas inseguranças). O reflexo é instintivo, afinal, filho de uma mãe crente fervorosa e um pai que abomina qualquer comportamento distante da masculinidade excessiva, o protagonista se apequena diariamente na tentativa de sobreviver.
Não é como se o núcleo familiar fosse o único problema, já que a sua própria vivência dentro da Igreja também se mostra bem presente na maneira como ele lida consigo mesmo. A famosa ‘culpa cristã’ dá as caras em seus pensamentos frequentemente, que voltam nas lembranças do quanto já se sentiu pertencente no lugar, no momento em que as coisas deixam de ser acolhedoras e no entendimento de que tudo isso é capaz de ferir os princípios morais nos quais foi inserido por anos.
Com tudo narrado na primeira pessoa, fica fácil vestir a pele de Jonas e entender os motivos por trás de cada uma de suas reações desconfiadas, que surgem até mesmo com os melhores amigos, os quais ama plenamente, mas ainda sente certa dificuldade para se abrir completamente. Nesses momentos, o limbo no qual o personagem está inserido parece ser eterno e o cansaço mental ganha altas dimensões – a ponto de até mesmo o emprego em uma cafeteria na Avenida Paulista parecer mais aconchegante que os discursos da própria mente.
“Passo quarenta minutos escutando o pastor falar sobre o plano de Deus para as famílias. Sinto a respiração da minha mãe ficar mais pesada quando ele fala sobre como devemos sempre orar pela alma dos nossos familiares que estão fora dos caminhos do Senhor. A vida inteira eu vi minha mãe orando pela conversão do meu pai, e só hoje eu percebo que provavelmente tenha me juntado a ele nessa lista de oração.”
O momento de ruptura para o ciclo complicado surge na barba de um certo garoto ruivo, que inspira o personagem a escrever e desperta sentimentos inéditos. Aos poucos, a descoberta ganha lar e é impossível não se apaixonar por cada detalhe de um processo muito maior do que o do amor romântico: a aceitação plena de quem se é. Conforme Jonas se abre a novas possibilidades, passa a hierarquizar as prioridades, começando por si mesmo.
Aumentando a confiança nas pessoas que realmente valem a pena e percebendo que o significado de família é múltiplo, coisas que pareciam permanentes se mostram voláteis e a vida deixa de ser um bicho de sete cabeças para se apresentar como é. A trajetória agora se denomina como algo que conta com tantos problemas quanto soluções e, claro, mais de um milhão de possibilidades de ser recheada de felicidade.
“Logo ele, que queria sempre se diminuir e se esconder, acabara indo viver no maior lugar do mundo.”
Com uma escrita extremamente fluida, as 352 páginas de Um milhão de finais felizes voam como os foguetes que decoram as paredes do Rocket Café – nome do local de trabalho de Jonas. A narrativa não precisa de muitos trunfos ou elementos altamente ficcionais para se destacar, ainda mais quando a vida real de pessoas queer já vem com todos os elementos de um bom enredo: drama, paixão, medo, desconfiança, amor e muito mais.
Nas linhas doces das descobertas, Vitor Martins, que também é autor de títulos como Quinze dias, dá um show no gênero Young Adult e compõe aquelas leituras conforto que se tornam casa e nos ensinam que nada como um dia após o outro. Expressando da dor ao amor, o livro não é um romance, mas uma carta de amor próprio capaz de ajudar quem está em uma situação parecida a não se sentir sozinho, afinal, realmente não estamos.
Pode ser que sejam as quase fanfics sobre piratas gays, o carinho na cabeça de gatos gordinhos, os lanches em carrinhos de rua que provavelmente nem tem alvará ou as caipirinhas em uma noite de balada cheia de luzes brilhantes, mas tudo na obra conspira para a vontade de ler mais e mais. Nas expectativas de quem não sente que cabe no mundo, ter Um milhão de finais felizes para viver parece ser uma coisa incrível.