Ana Beatriz Rodrigues
242 mortes, 680 pessoas feridas, dor e saudades marcam o dia 27 de janeiro. Isso porque nessa mesma data, em 2013, Santa Maria (RS) e o Brasil presenciaram o segundo maior incêndio do país em número de vítimas fatais. A tragédia da Boate Kiss deixou feridas e cicatrizes que são impossíveis de serem esquecidas. O medo e o desespero dos pais, sobreviventes, bombeiros, e todos os envolvidos no incêndio não deixou de existir quando o outro dia começou, e aquela noite é assistida milhares de vezes por todos que presenciaram os resultados do incêndio. Intencionada a não deixar essas histórias apagadas, a jornalista Daniela Arbex lançou em 2018 o livro Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss.
Há 8 anos, a noite que era para ser de festas e felicidade acabou em dor e luto eterno. Nos meses que se passaram, houve um grande movimento de acolhimento e cuidado com os feridos (diretos e indiretos) da Boate Kiss. Porém, isso não continuou. O sofrimento ainda existe e Daniela Arbex estava disposta a trilhar esse caminho de angústia para contar a história dos afetados pelo incêndio. Através de mais de 100 entrevistas com pais, sobreviventes, e envolvidos no incêndio e a leitura de mais de 20 mil páginas do inquérito, a jornalista relembrou uma das maiores tragédias do país.
A escrita da autora faz com que todas as vítimas deixem de ser apenas os números, sapatos e celulares abandonados naquela noite. Daniela Arbex humaniza aqueles jovens que perderam a vida ou foram afetados. Até a editoração de Todo dia a mesma noite faz com que as mortes adquiram identidades. Nas contracapas, há uma lista com o nome completo das vítimas fatais daquele episódio trágico. Além de fotos no final do livro, de pais, sobreviventes e pessoas que trabalharam naquela madrugada.
Mas essa humanização vai além de elementos imagéticos. A jornalista, ao percorrer o caminho dos jovens e dos pais nos dias (e na vida) antecessores ao incêndio, transforma eles em pessoas que não esperavam os seus fins trágicos. Na verdade, ninguém espera algo daquela proporção e Marcelo Canellas tenta significar a dimensão de tragédias no prefácio do livro. “Tragédias são episódios tão avassaladoramente desconstrutivos da rotina esperada, tão perturbadoramente desarrumados da ordem natural, tão violentamente instauradores da ruína e do caos, que nem mesmo a semântica se mantém de pé”.
Após a tragédia, houve uma grande cobertura midiática e o Brasil inteiro virou os olhos e ouvidos para a cidade universitária. Só que havia muito mais a ser falado. Daniela Arbex disse, em entrevista, que ao contatar uma das mães das vítimas ela respondeu “ai, que bom que tu me procurou, a gente precisa ser ouvido”. E a jornalista cumpriu essa missão. Ela ouviu e retratou em um relato doloroso guiado por lágrimas e injustiça de vidas perdidas e histórias não construídas.
Pela primeira vez, em muitos anos, os profissionais que trabalharam no incêndio da Kiss naquela noite dão seus depoimentos. O peso dos corpos dos jovens ainda estão nas mãos daqueles bombeiros; o caos daqueles hospitais ainda acompanham os profissionais de saúde. Com o livro, você é transportado para aquela pressão e entende como esse momento foi crucial tanto na vida dos jovens, quanto dos que estavam dispostos a salvá-los naquela noite. Se não fossem pelos bombeiros, o número de vítimas seria ainda maior. Se não fossem pelos plantonistas e os voluntários, mais pessoas perderiam a vida nos hospitais.
A forma ímpar como Daniela Arbex consegue trazer os sentimentos dos pais é algo surpreendente. Somos telespectadores de uma história real e a jornalista consegue deixar isso bem explícito na sua escrita. Mesmo que essa comoção seja muito difícil de ser transmitida, o livro sobre a tragédia da Boate Kiss vai além das expectativas e mostra como ela é uma jornalista que faz o seu trabalho de maneira impecável.
O que não é novidade, já que Daniela foi gratificada duas vezes com o Prêmio Jabuti e é a autora de Holocausto Brasileiro e Cova 312. O livro foi publicado em 2018, esse texto está sendo escrito em 2021 e até agora não temos respostas. A justiça que é pedida por todos os pais e afetados por essa tragédia não foi encontrada em 8 anos. Na obra de Daniela, não há relatos dos quatro réus do processo, pois eles se recusaram a conversar com a jornalista e escritora.
A leitura de Todo dia a mesma noite é chocante. Parece tudo muito palpável e a realidade é muito dolorida. As sirenes, os telefones tocando, o grito e o choro parecem ser a trilha sonora enquanto você lê. Os 9 mil anos de vida em potencial podem ser lamentadas e lembradas novamente nessa obra. Há sensibilidade e respeito em tratar cada história, levando você de fato ao coração de cada vítima daquela tragédia. Ler Todo dia a mesma noite é como assistir o jornal daquele chocante domingo de janeiro de 2013.