Guilherme Veiga
O três, seja na numerologia ou não, é cheio de significados. A representação da trindade paira desde a Igreja Católica até mesmo à triforce de Zelda e carrega com si uma enorme carga, explicada ou não. Ele também simboliza um novo caminho, em que, na melhor de três, a inserção de um terceiro elemento ultrapassa a tirania do um e traz um novo horizonte para o impasse do dois. Da mesma forma em que juntamente significa o fechamento, quando é nesse conjunto ímpar que a maioria dos arcos, seja na literatura ou no audiovisual, se arranja em trilogias.
Na Música, porém, é difícil algo que fuja da unidade. Você deve estar pensando agora em milhares de bandas ou groups, estes últimos impulsionados pelo K-pop. Sim, eles existem, mas é de se analisar que, no caso das bandas, elas são personificadas muitas vezes em seu frontman e, com os boy ou girl groups, a persona criada para seus integrantes é tão forte que, às vezes, ultrapassa a própria organização da qual fazem parte. No entanto, é mais uma vez no três que as coisas funcionam de modo diferente.
É dessa arrumação que surgiu o termo power trio, popularizado na década de 1960 e que difundiu a formação guitarra, baixo e bateria. Na lógica de que três cabeças pensam melhor do que uma, surgiram grandes nomes desde Nirvana à Tribalistas e, nesse sentido, o trio composto por Phoebe Bridgers, Julien Baker e Lucy Dacus já mostrou a que veio em seu primeiro disco, the record.
As boygenius se tornaram quem são por acaso. Bridgers e Dacus eram atos de abertura para Baker em 2016 e, de vez em quando, cada uma delas aparecia no show da outra ao longo do ano seguinte, o que resultou, em 2018, em uma turnê das três em que cada integrante cantava sua carreira com algumas músicas em conjunto. O fortalecimento da amizade resultou no EP autointitulado, que começou com a ideia de gravar uma ou duas canções para suprir os pedidos dos fãs, mas se transformou em um consistente trabalho de seis faixas que não só consolidou as três no cenário indie como também jogou um balde de água fria na forma em que a indústria, majoritariamente masculina, se voltava para intérpretes femininas.
De Ludmilla à Anitta, de Sabrina Carpenter à Olivia Rodrigo ou de Katy Perry à Taylor Swift, mulheres foram condicionadas a se degladiarem seja nos charts, nos fã-clubes ou nas páginas de fofoca, para que possam sobreviver no mundo da Música. Logo, três artistas do mesmo gênero, tamanho e temáticas como Lucy Dacus, Phoebe Bridgers e Julien Baker, naturalmente seriam induzidas – no melhor dos cenários – à competição. No entanto, a amizade das três e a criação do boygenius vem na contramão da indústria e é um movimento de resistência para a mesma.
Esse cenário só é possível pela existência de algo que as aproxima sem ser a Música, pois aqui ela é instrumento para externalizarem seus interiores. Dessa forma, o boygenius se tornou não só um espaço seguro para a feminilidade como também para a sexualidade, fazendo com que o grupo entendesse sua inserção e relevância na comunidade queer. Por isso, o projeto surge como esse reduto no qual as três podem maturar seus sentimentos e propósitos.
A discografia do grupo funciona, então, como um processo de reabilitação. O EP boygenius se afunda em desgraça enquanto the record já se reconhece no fundo do poço e cria uma imagem otimista e esperançosa para seus problemas. Isso fica muito claro no encerramento do projeto, Letter to and Old Poet que interpola Me & My Dog e mesmo com um verso final bem semelhante, a simples troca de “faminta” por “feliz” dita a enorme diferença entre as duas obras.
Só que diferente da imagem que comumente temos de centros de reabilitação, aqui não há aquele ‘oi, meu nome é fulana’ seguido de um ‘olá, fulana’, pois, para isso, é preciso levar em conta que estamos cercados de desconhecidos. Como o grupo é composto por velhas conhecidas, the record é o exercício que ótimas compositoras se propuseram para conhecer liricamente a si e a outra. Nesse sentido, o álbum se assemelha mais ao convite para a rehab – como um ‘oi, nós somos o boygenius e aqui você é livre para ser e sentir’.
Produzido por Catherine Marks (que já trabalhou com nomes como The Killers e Foals) e tendo a unanimidade feminina em seu processo, o álbum se inicia de forma crua e conjunta, com a angelicalmente harmônica Without You Without Them. Além de ser a única faixa sem uma distinção de estrofes para cada intérprete, ela também materializa esse convite nos versos “Quero ouvir sua história e fazer parte dela” e “Eu quero que você ouça minha história e seja parte dela”. Apesar da pouca duração, o disco tem o tempo necessário para evidenciar que preza muito pela competência lírica que as três têm de sobra.
O projeto então engata na trinca de singles $20, Emily I’m Sorry e True Blue. Eles servem para imprimir a marca de Baker, Bridgers e Dacus, respectivamente, na obra, mostrando que cada particularidade será respeitada e utilizada para enriquecer o produto final. O ato de as ouvir em sequência soa não-linear e inconsistente, o que para um álbum pode parecer prejudicial, mas aqui é totalmente proposital e necessário para diferenciar a personalidade de cada uma.
Porém, o lado A do registro faz questão de, mesmo com três personas únicas e gigantescas, mostrar como, ao invés de encapsula-las em um produto, o adapta para elas. Not Strong Enough, o smash hit do projeto, escancara isso ao conseguir inseri-las em um folk rock extremamente espirituoso e cativante, que não é marca registrada de nenhuma das três.
Após o terreno ser delimitado na primeira parte, o lado B aprofunda as intenções do grupo e suas referências. Mais melancólico do que seu começo, a obra retorna aos projetos solo de suas intérpretes e também evidencia que o registro é o resultado de quem as moldou na Música, indo de Simon & Garfunkel, Crosby, Still & Nash até Leonard Cohen. Os mais traumatizados com fan service, podem pensar que a inserção de muitas referências – algumas até literais – esvazia o projeto, só que o álbum contra-argumenta ao se mostrar a versão lapidada de três artistas extremamente ricas musicalmente.
Ainda no paralelo cinematográfico, the record pode ser, a grosso modo, definido como o Vingadores para pessoas tristes. E essa comparação faz ainda mais sentido ao analisar os moldes em que the record foi concebido. Após a ideia ser cogitada, cada uma optou por antes desenvolver sua carreira solo, seja em turnês, aprimorando a composição, colaborando com gente de alto nível ou conquistando indicações ao Grammy, e consequentemente, o respeito da indústria.
O retorno pode até ter demorado depois do sumiço de 2018, porém, hoje se mostrou necessário. Com o boygenius funcionando como o ponto de reflexão das três enquanto pessoas, não se podia ter a indefinição delas enquanto artistas. Tanto que o processo de criação se deu, principalmente, durante a pandemia, fazendo com que a reunião se torne uma válvula de escape em suas vidas, em que elas, sem perderem suas essências, deixam de ser Phoebe, Lucy e Julien, para se tornarem as boygenius.
Portanto, the record é o queijo com goiabada, o pão de queijo com doce de leite, a soneca após um almoço de domingo na praia, o tomar banho após limpar a casa. A obra é o conjunto de combinações que jamais imaginaríamos como necessárias, mas que dão sentido para aquele pequeno momento de nossa vivência. E o registro é coerente no recorte temporal em que ele se insere na vida das três, mostrando que tais momentos podem ser encontrados nos piores períodos, desde que saibamos conviver e extrair o melhor a partir deles – o que no caso das três, resulta em música.
Apesar dos cinco anos que separam as duas obras da discografia da banda, o registro começa exatamente onde o autointitulado parou. Dessa forma, o álbum representa uma ode ao tempo e sua implacabilidade, na qual , mesmo na continuidade dos acontecimentos, o seu correr promove uma enorme mudança em nós. E os 42 minutos de the record são um lembrete de que a melhor coisa a se fazer é deixá-lo passar.
Em entrevista à Rolling Stone, Lucy Dacus contou que uma das composições surgiu enquanto Phoebe Bridgers, para mostrar uma música às amigas na estrada, errou o caminho. No mesmo sentido, o próprio boygenius é esse desvio de rota em suas carreiras. Exaltando a passagem do tempo do mesmo modo que o disco de estreia, elas mostram que desvios não são um desperdício, e sim parte da jornada. E, se a vida não tem GPS, the record não precisou de três chances para nos convencer de que é um ótimo companheiro de viagem nesse curto trajeto de nossas vidas.