Vitória Lopes Gomez
“Não é o que o tempo rouba, é o que ele deixa para trás”. Com um trailer recheado de ação e uma pitada de mistério, e contando com ninguém mais ninguém menos que Charlize Theron como protagonista, a Netflix lançou sua nova empreitada: The Old Guard. Cada vez mais apostando em suas produções originais, desde romances adolescentes, como A Barraca do Beijo, e thrillers, como Bird Box, a plataforma arrisca pouco, mas, novamente, garante o entretenimento em seu novo longa de ação.
Na trama, após séculos agindo nas sombras, alternando-se entre mercenários e heróis, um grupo de quatro soldados imortais liderados por Andrômeda “Andy” de Cíntia (Charlize Theron) tentam passar despercebidos em um mundo cada vez mais conectado. Até que caem em uma armadilha e têm suas habilidades descobertas, ao mesmo tempo que fogem da CIA e do cientista que quer capturá-los e comercializar seus poderes de cura, eles descobrem uma nova imortal, Nile (Kiki Layne), e se veem no dever de integrá-la ao grupo. Além das duas complicadas façanhas, mas não paralelamente a elas, a gangue tem de lidar com a não tão recente, mas misteriosa possibilidade da perda da imortalidade.
O longa é baseado nas HQs de mesmo nome de Greg Rucka e do ilustrador Leandro Fernández. Rucka se arrisca no universo cinematográfico pela primeira vez e fica responsável também pelo roteiro. A direção é de Gina Prince-Bythewood, que se consolida como a primeira diretora negra a comandar uma adaptação de quadrinhos e já garante seu próximo – e merecido – trabalho na plataforma.
O roteiro não é dos mais ousados e pode ser superficial, por vezes. Talvez pela inexperiência de Rucka, talvez pelo inevitável holofote em Charlize Theron, alguns dos integrantes da “gangue” imortal acabam sendo esquecidos, enquanto a líder ganha um enfoque maior. O passado de Andy é explorado através de flashbacks, mas os dois cavaleiros rivais nas Cruzadas, Joe (Marwan Kenzari) e Nick (Luca Marinelli) não são, assim como a origem do soldado napoleônico, Booker (Matthias Schoenaerts), tudo é apenas citado, apesar de terem muito potencial narrativo. Nile, a novata, felizmente, ganha um pouco mais de destaque que os veteranos.
É a chegada de Nile que, a princípio, aflige o grupo, já que isso não acontece há séculos, tornando a narrativa mais interessante, ao passo que somos inseridos à vida dos soldados junto com a nova imortal. O contraste dela com os outros guerreiros, seus receios e questionamentos, servem como uma forma de autorreflexão a eles, já tão acostumados com o próprio jeito de fazer as coisas, a ponto de banalizar a vida e a violência. É com Andy o contraste maior, rendendo uma ótima cena de luta entre as duas. Apesar do atrito inicial, a mais velha e a mais nova formam uma boa dupla, principalmente na hora do combate.
Os vilões da trama também entram em contraste. Enquanto Copley, o ex-agente da CIA, acredita que as propriedades de cura dos guerreiros possam ajudar no tratamento de doentes e salvar a humanidade, o cientista Steven Merrick (Harry Melling) quer testar os imortais para seu próprio lucro. O primeiro é muito bem trabalhado: com a contextualização de seu passado, seus dilemas e princípios, as atitudes do ex-agente são plausíveis e até despertam a empatia do telespectador. Enquanto o segundo é o típico vilão de HQs: um cientista à beira da maluquice (só faltou a risada maligna) que não se importa em sacrificar até membros de sua equipe para ter o que quer. Os dois, tão opostos, são necessários à história e deixam o público a refletir quem é o real antagonista na trama.
Em meio ao primeiro e terceiro atos frenéticos, é no segundo ato que, com a inserção dos flashbacks, o relacionamento entre os integrantes é aprofundado e rende diálogos que humanizam os guerreiros, dando um tom mais intimista ao filme. Em uma reviravolta, a possível perda da imortalidade traz à tona lados mais vulneráveis do grupo. Mas é a ação, o carro chefe de The Old Guard, o que mais chama a atenção. Momentos calmos são intercalados com cenas de lutas, que apesar de simples, são cuidadosamente coreografadas e dirigidas, inflamando a narrativa e tirando o fôlego do telespectador.
Charlize Theron não surpreende quando rouba a cena nos três atos. Talvez a principal responsável pelo sucesso do filme, a estrela desempenha muito bem a tarefa de dar vida à Andy: ao mesmo tempo que mantém a postura durona da personagem, que garantiu sua sobrevivência durantes séculos, consegue passar um lado humano e mais emocional, quando necessário. Theron, que aposta em filmes corajosos, como Monster (2003) e Tully (2018), e nos últimos tempos se dedica à ação, como o premiado Mad Max (2015) e Atômica (2017), estende sua versatilidade às cenas de luta, dispensando dublês e se consagrando no gênero. Toda a expectativa alimentada pela atriz é atendida.
Kiki Layne também é uma boa surpresa. Novata no gênero, também faz parte das cenas de ação e entrega uma boa performance, trazendo os anseios e medos de uma jovem que acabou de descobrir seus poderes. Os atores secundários incorporam bem seus personagens, principalmente nas lutas, mas têm pouco tempo para trabalharem suas origens.
As duas protagonistas e a diretora alimentam a esperança de maior representatividade nas produções hollywoodianas. Enquanto as mulheres ainda são a minoria em filmes de ação e super heróis, grandes sucessos como Mulher Maravilha, Aves de Rapina, Atômica e, agora, The Old Guard, que não colocam a personagem feminina como o mero interesse romântico – e sexualizado – do galã, nos deixam ansiosos para o futuro das produções do gênero. E a estrela Charlize Theron faz questão de ressaltar, mais de uma vez, a necessidade de representatividade não só em seus trabalhos, mas em toda Hollywood.
O final de The Old Guard deixa em aberto à situação dos guerreiros e a razão de sua imortalidade e uma cena pós-crédito, com a volta de um importante personagem, aumenta ainda mais a tensão e a curiosidade do telespectador.
Sem prometer muito, a Netflix entrega um bom e divertido filme de ação e deixa o gancho para uma sequência. Charlize Theron anima os fãs do filme: “Todos nós realmente queremos fazer isso (uma sequência), tenho certeza de que, na hora certa, iniciaremos a conversa”.
Talvez na esperada continuação conheceremos mais do passado dos guerreiros imortais e descobriremos o que realmente aconteceu em São Paulo em 1834.