That! Feels Good! transporta a Música disco reimaginada ao contexto do pop contemporâneo

: Capa do álbum “That! Feels! Good!”, uma fotografia da cantora Jessie Ware, mulher branca de cabelos longos lisos, em um fundo rosa claro, de costas olhando de lado para nós. Ela usa um coque alto preto, delineador preto, um brinco de pérola branco na orelha direita, e alguns colares de pérolas brancas de diferentes comprimentos. Ela está descamisada, e segura o braço direito um pouco acima do cotovelo com a mão esquerda, sugerindo que ela está de braços cruzados
Fazendo jus ao título, That! Feels! Good! entrega sensualidade, energia, glamour e elegância (Foto: Andrew Benge)

Gustavo Capellari

Em 2020, a cantora Jessie Ware, já consolidada na época no mercado fonográfico britânico com três álbuns lançados, entrava em uma empreitada importante para sua carreira: o lançamento do seu quarto disco, intitulado What’s Your Pleasure?, que trouxe uma sonoridade diferente da que a artista vinha explorando anteriormente. Naquele ano, Ware explorava a pergunta “qual é o seu prazer?”. Já em 2023, That! Feels! Good! é lançado e faz uma afirmação na qual o prazer é celebrado. Esse pequeno detalhe, embora pareça pouco importante, nos ajuda a entender as transformações nos estilos explorados pela cantora.

O que os dois álbuns mais têm em comum talvez seja a presença da Música disco, juntamente com as letras e melodias cativantes que compõem a trajetória da diva. Investindo em ritmos dançantes e com um apelo comercial maior do que seus primogênitos – Devotion (2012) e Tough Love (2014) –, ela passa a ganhar cada vez mais espaço nos charts e admiração da crítica.

 

Fotografia de Jessie Ware, uma mulher branca de cabelos castanhos longos, em frente a um fundo branco semelhante a uma cortina. O cabelo se esvoaça um pouco para a esquerda. Ela está enquadrada das axilas para cima e usa uma roupa preta, brincos e dois colares de pérolas.
Jessica Lois Ware nasceu em Londres no ano de 1984 e é irmã da atriz Hannah Ware (Foto: EMI)

A Música tem a capacidade de nos transportar para lugares de conforto, sejam eles utópicos ou não. Jessie Ware se coloca na posição de alguém que precisava de um escape da realidade e a criação de seus dois últimos álbuns a prestou esse papel, especialmente considerando que o mais recente foi gravado e produzido inteiramente durante a pandemia da covid-19.

Isso também não quer dizer que ela já não tivesse conquistado posições de destaque anteriormente. A artista foi nomeada múltiplas vezes em diversas premiações, dentre elas o Brit Awards, o MOBO Awards (voltado para a Música originária das comunidades negras) e o Mercury Prize, tendo sido indicada para Álbum do Ano pelo seu debut em 2012 e pelo seu lançamento de 2023.

Talvez um dos diferenciais mais marcantes de Ware seja a sua capacidade de performar e compor música pop de forma eclética e elegante, trazendo múltiplas influências e utilizando-as de uma maneira que faça sentido para um projeto específico. Enquanto seus primeiros três álbuns têm uma sonoridade mais voltada para o R&B e o soul, What’s Your Pleasure? e That! Feels! Good! abraçam o estilo disco.

Embora mais voltado para os clubes de dança (antigamente chamados de discotecas), o disco tem uma origem comum aos gêneros anteriores: as comunidades afro-americanas. O desenvolvimento dessa subcultura na década de 1970 provocou diversas transformações na sociedade e na cultura, e foi essencial para a construção das bases da Música eletrônica como a conhecemos hoje, inclusive o nu-disco.

Fotografia da cantora Jessie Ware, uma mulher branca de cabelos castanhos, em um palco com os braços abertos para os lados e a palma das mãos para cima. Ela usa uma roupa azul clara que se estende até os seus pulsos. A parte dos pulsos da roupa tem uma textura mais felpuda. Na sua frente há um microfone preto. O fundo é preto e há uma fonte de luz no canto superior direito que ilumina a artista.
“Esta é a minha vida? Começo ou fim? / Posso começar de novo? Podemos começar de novo?” (Foto: Andrew Benge)

Para além da Música em si, as comunidades que frequentavam as discotecas nos Estados Unidos também incluíam, além da comunidade negra, pessoas de outros grupos subalternos da sociedade norte-americana, como latinos e LGBTs. Jessie Ware e James Ford, seu produtor de longa data, evidentemente conhecem e prestam homenagem à influência histórica do disco.

Ware também explora outros gêneros, como o diva house, o soul e o funk estadunidense. A produção afiada de Ford e de Stuart Price serve como uma luva para os vocais e arranjos das faixas, que marcam a transição de um disco um pouco mais melancólico do lançamento predecessor para uma atmosfera mais enérgica e animadora. Talvez, Remember Where You Are, que finaliza o What’s Your Pleasure, delimite o início dessa transição, pois, na época, a artista ficou em dúvida se a música deveria estar mesmo no álbum por ser mais exultante do que a maioria das outras.

A música negra é uma das grandes fontes de influências artísticas de Jessie Ware, que cita sua admiração a figuras como Donna Summer, Minnie Riperton e Evelyn “Champagne” King. Ela também já colaborou com outras mulheres que constroem o que poderíamos chamar de pop sofisticado contemporâneo, notadamente Kylie Minogue e Róisín Murphy. Porém, diferentemente de Ware, elas já construíam suas carreiras musicais há mais tempo, em especial Minogue, que começou em 1988. Ambas emprestam seus vocais na faixa-título, que dá início ao álbum.

Nessa faixa, um lema é repetido algumas vezes: o prazer é um direito”. Trata-se de uma mensagem que se encaixa perfeitamente no conceito hedonista do disco, que celebra o prazer de viver, estar e ser quem se é. O amor e a sexualidade também aparecem como temas recorrentes. Além disso, ao tratar o prazer como direito de todos, Jessie Ware reitera sua consciência social perante as diversidades e opressões perpetradas contra mulheres, negros, imigrantes e pessoas queer.

A segunda canção, Free Yourself, fala sobre liberdade, empoderamento e volúpia. Ela sente que os seus dois últimos discos, mais do que reinvenções drásticas de sua Arte, seriam em grande parte retornos a questões passadas, e também caminhos para ela se libertar de pressões aprisionadoras masculinas e firmar sua independência artística.

Fotografia de Jessie Ware, uma mulher branca de cabelos castanhos, e Kylie Minogue, uma mulher branca de cabelos loiros, sentadas lado a lado e sorrindo. Jessie usa uma blusa branca com bolinhas pretas, e Kylie usa um casaco verde peludo com linhas pretas nas aberturas. Ela mostra sua mão direita, na qual está usando um esmalte roxo nas unhas. No fundo preto, há no centro quadrados pretos inscritos um no outro, alternando entre lados pretos e brancos
Kylie Minogue colaborou com Jessie Ware em 2021, no single Kiss of Life (Foto: BMG)

That! Feels! Good! não se limita apenas a composições energéticas ou bombásticas. As faixas Hello Love, Begin Again e Lightning são mais plácidas do que o restante, o que promove um equilíbrio interessante que não torna o conjunto da obra cansativo e nem entediante demais. Seja para quem quer uma Música mais animada, ou para quem prefere uma sonoridade mais calma e atmosférica, há o que se aproveitar em um dos álbuns mais aclamados de 2023.

A ecleticidade, aqui, não é um problema, pois não há uma salada de estilos que não conversam entre si. É, pelo contrário, um projeto com uma segmentação coerente e que já apresenta, logo de início, o tipo de conteúdo que será passado ao ouvinte. A própria identidade visual do projeto também exala opulência e autodeterminação, combinadas a uma estética vibrante e, por vezes, kitsch, característica das décadas de 1970 e 1980.

 

Embora Ware enxergue seus últimos esforços artísticos mais como retornos a influências anteriores do que uma ‘reinvenção da roda’, é inegável que o seu trabalho apresenta originalidade, carisma e expressão própria que não soa como uma mera repetição de fórmulas prontas do pop. Em meio às suas próprias extravagâncias, That! Feels! Good! soa bem, como o título revela, também pela sua produção sóbria e letras que, embora sem uma grande complexidade, cumprem excelentemente seus objetivos.

Pensem nesse disco e em What’s Your Pleasure? como o Bert e Ernie do revivalismo moderno do Studio 54, ou um par de hits de dopamina queer-codificados que realmente não podem ser imaginados existindo separadamente.” – Jessie Ware em entrevista para o jornal Independent

Afinal, seja para ouvir em uma festa, em uma reunião de amigos ou sozinho em casa com um bom par de fones de ouvido, Jessie Ware é capaz de encantar uma gama variada de públicos. Ela pode externalizar melodias doces ou sentimentos melancólicos; cantar como um golfinho ou como uma diva pop oitentista. Para o ícone da música alternativa – e, porque não, da música pop no geral –, podemos dizer: “estamos nos sentindo bem”.

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