Bruno Andrade
O ano é 1969. Seria mais um verão qualquer, não fosse as mais de 300 mil pessoas reunidas em seis finais de semana consecutivos nos Estados Unidos, envoltas por música, dança e fortes discursos indignados que sucederam o assassinato de Martin Luther King Jr. (após uma sequência de homícidios políticos com motivações racistas, de Malcolm X à posterior morte de Bobby Kennedy – e tantos outros). Mas ao contrário do que se possa imaginar, não se trata do famigerado festival de Woodstock, pois esse, apesar de dominar a cultura popular, aconteceu em somente quatro dias (15 à 18 de agosto de 1969). A 160 km dali, no antigo bairro periférico do Harlem, estava acontecendo uma revolução não televisionada. Indicado ao Oscar 2022 na categoria de Melhor Documentário, Summer of Soul (…ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) traz à tona os registros do Festival Cultural do Harlem, um marco histórico na Música que se seguiu esquecido; até agora.
As filmagens – inéditas por mais de 50 anos – foram recuperadas pelo músico e diretor estreante Ahmir “Questlove” Thompson, e revelam um importante momento cultural estadunidense, guiado por nomes como B.B. King, Mahalia Jackson e Nina Simone. As ebulições sociais e sócio-políticas que se infiltraram na sociedade à época são jogadas na tela em cada discurso incisivo que os artistas trazem – seja através dos registros do Harlem Cultural Festival, seja pelas falas “contemporâneas” que ex-participantes relatam. Havia algo importante na existência de um evento do tipo naquele momento da História, e todos ali pareciam ter consciência disso; talvez por essa razão Summer of Soul permaneça contundente e avassalador: é um registro esquecido de uma revolta segmentada através da arte.
O documentário, em si, não inventa muita firula. Trata-se de uma sobreposição de imagens de época em contraponto a entrevistas recentes. Na abertura – uma sequência genial –, vemos Stevie Wonder em um solo magistral de bateria. Esse trecho logo no começo não parece ter sido escolhido a mero acaso, pois Questlove é também baterista, e lidera a banda The Roots, que integra o programa The Tonight Show Starring Jimmy Fallon.
A montagem primorosa, a cargo de Joshua L. Pearson, também merece destaque, dado que cria lentamente em seus 118 minutos de duração as tensões sociais as quais o festival estava inserido. A junção de conteúdo e técnica impecável de edição rendeu ao filme duas indicações ao BAFTA, como Melhor Montagem e Melhor Documentário – categoria em que venceu –, e uma série de vitórias nos principais festivais de Cinema, incluindo o de Sundance e o Independent Spirit Awards. O longa também concorre no Grammy 2022 na categoria Melhor Filme Musical.
Summer of Soul ganha ainda mais fôlego ao se desenvolver entre os bastidores do Festival Cultural do Harlem. Diferente do que costuma ocorrer em filmes do gênero, o foco não está somente nos shows e na reação do público, mas também em seus entremeios e ligações externas, nos políticos envolvidos, na relação conturbada com a polícia (com medo de reações policiais violentas, os organizadores do evento contrataram os Panteras Negras para fazerem a segurança do festival) e todo o contexto repressivo que foi permitido esquecer em meio aos solos catatônicos das guitarras amplificadas, dos pianos melódicos e dos tambores que rugiam raivosamente.
Em 1969, o “Homem Estadunidense” também foi à Lua, mas ele era branco, e não pretendia considerar a população negra em sua viagem interestelar. Uma das cenas mais marcantes do longa é durante a fala de Roger Parris, na qual ele diz que a comunidade do Harlem não estava interessada em ir à Lua, “estava preocupada na realidade”, e o real era cruel o suficiente para se negar o direito a sair da Terra. Como se não bastasse as complicações de todos os tipos que vinham externamente – principalmente por forças políticas –, outro inimigo dominou o bairro: a heroína.
O final dos anos 1960, especificamente, foi um período duro, no qual a epidemia da droga ceifou a vida de vários jovens, cujos possíveis motivos do vício estavam ligados justamente à realidade abissal que a população negra havia sido jogada em decorrência do racismo, como sugere um entrevistado em uma das cenas. Foi também um momento chave na Guerra do Vietnã, onde o governo estadunidense enviou jovens negros ao front em números muito maiores do que jovens brancos, e muitos daqueles que se negaram a ir foram caçados e mortos pela polícia. Por esses motivos, como o próprio documentário deixa no ar, Tony Lawrence idealizou o Harlem Cultural Festival para evitar que a cidade queimasse em meio às revoltas e protestos – totalmente legítimos.
O subtítulo de Summer of Soul remete a canção Revolution Will Not Be Televised, do músico e poeta Gil Scott-Heron – considerado uma das fontes de inspiração para o surgimento do rap –, sustentado como um dos hinos de ativistas negros no final dos anos 1960. Ao longo do documentário, os entrevistados explicam como a palavra “Black” mudou de um termo pejorativo para um lugar de autodeterminação e orgulho, valores que foram ainda mais impulsionados – e incentivados – no festival. Algo que Questlove explorou muito bem foi o desenrolar de um novo mundo para a população negra que começava a ser consolidado, e os discursos dos artistas no evento giravam em torno de um mesmo tema: tenha orgulho de ser quem você é.
Próximo ao fim, Nina Simone surge cantando “somos negros, somos lindos”, reafirmando a essência do festival e sua importância histórica. Pela primeira vez, após um período intenso de crimes hediondos contra a comunidade, havia um evento que celebrava, enfim, a existência dessa mesma comunidade. Aquele era um período de mudanças sociais profundas, e embora fossem julgadas como inatingíveis e utópicas por uma parcela da população, sonhar ainda era possível.