Guilherme Veiga
Um tablado preto de teatro. Uma luz no fundo, de onde vem um par de pernas que veste uma calça cinza clara e um sapato terrivelmente branco. Essas pernas chegam até um microfone e então é posto um rádio ao lado. A mão do corpo a quem pertence tais pernas dá play no aparelho, e então uma bateria digital começa aquela que seria uma das versões mais emblemáticas de Psycho Killer. A câmera sobe até o vislumbre de um jovial David Byrne e o resto é história. Assim começa aquela que, posteriormente, seria considerada a obra definitiva quando o assunto é filmes-concerto: Stop Making Sense.
Se hoje os épicos HOMECOMING: A Film by Beyoncé (2019) e Taylor Swift: The Eras Tour (2023) ganharam rapidamente o mundo, foi porque Talking Heads decidiu documentar sua sequência de shows da forma mais Talking Heads possível. O Pantages Theater recebeu, entre 13 e 16 de Dezembro de 1983, talvez uma de suas experiências musicais mais sinestésicas, que foram domadas nas câmeras pelo diretor em ascensão Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes e Philadelphia).
Retratando a turnê de despedida da banda na divulgação do álbum Speaking In Tongues – que apesar de não ser a última obra do grupo, foi a última vez que eles excursionaram – Stop Making Sense acerta ao entender, ao mesmo tempo em que define, o conceito de performance. A estética de Teatro nua e crua, dá toques de Hamilton para a produção muito antes de Lin-Manuel Miranda vasculhar os documentos da independência americana. Dessa forma, ela é até hoje a única que conseguiu replicar o melhor de dois mundos entre um show e um musical.
O filme-concerto não nasce pronto e roteirizado como os exemplos que temos com as divas pop. Pelo contrário, a produção se constrói aos poucos por aqui, desde a construção do cenário, que não tem vergonha de mostrar os contrarregras e equipamentos pra lá e pra cá, até a interação de Byrne e banda com a câmera e público, fluindo sempre de forma muito natural e crescente.
A fotografia de Jordan Cronenweth (Blade Runner) é extremamente inventiva e consciente ao optar por tirar o espectador de seu lugar comum. Aqui, não há aquele tratamento estático de cena onde o público está distante do artista de alguma forma. O que Stop Making Sense faz é colocar a audiência juntamente no palco, como se fosse mais um membro da banda participando daquela jam, interagindo com seus companheiros, desviando dos fios e pedestais.
Essa escolha é potencializada através do carisma da banda, que tem tanto o público do Pantages Theater como a audiência de casa na mão. David Byrne está tomado por devaneios e todos os integrantes têm uma sintonia descomunal, que mostra como eles não estão somente fazendo Música, mas sim vivendo ela de maneira única e visceral. Aliás, a escolha de que cada faixa introduza os participantes do grupo é extremamente acertada. Por mais que o Talking Heads tenha Byrne como garoto propaganda, todos brilham e direcionam sua superlatividade em um final apoteótico com Crosseyed and Painless
Assistir Stop Making Sense é como entrar na cabeça falante de cada integrante, não para ouvir uma gritaria desenfreada, mas o eco de um talento puro que nem precisou ser lapidado. Por isso, só foi estimulado por músicos que tinham uma conexão neural quando o assunto é Música. O Talking Heads, mesmo após seu fim, ainda reverbera, seja através de como suas músicas resistem ao tempo – a exemplo do álbum tributo, lançado para promover a regravação –, ou como as bandas usam o grupo de influência, indo de Arcade Fire à Radiohead.
Em tempos de performances cada vez mais enlatadas e roteirizadas, com o intuito de arrastar multidões e transformar todo show em uma experiência megalomaníaca de arena, o processo e o primor criativo às vezes se perde, se mascara em estruturas gigantescas ou simplesmente para de fazer sentido. É aí que Stop Making Sense cresce e, paradoxalmente, faz todo o sentido, pois é somente o Talking Heads sendo ele mesmo, nada mais do que isso, ao mesmo tempo que tudo isso.