Os 40 anos da epopeia de sentidos em Stop Making Sense

Cena de Stop Making Sense. Nela, vemos David Byrne, um homem branco de cabelos pretos. Ele veste um terno cinza e uma camisa cinza. O terno é consideravelmente maior que o corpo do cantor, ficando bastante folgado. Byrne está em pé, de olhos fechados e com a boca aberta em frente a um microfone. O fundo é preto.
Cabeças falantes nem sempre precisam fazer sentido (Foto: Arnold Stiefel Company)

Guilherme Veiga

Um tablado preto de teatro. Uma luz no fundo, de onde vem um par de pernas que veste uma calça cinza clara e um sapato terrivelmente branco. Essas pernas chegam até um microfone e então é posto um rádio ao lado. A mão do corpo a quem pertence tais pernas dá play no aparelho, e então uma bateria digital começa aquela que seria uma das versões mais emblemáticas de Psycho Killer. A câmera sobe até o vislumbre de um jovial David Byrne e o resto é história. Assim começa aquela que, posteriormente, seria considerada a obra definitiva quando o assunto é filmes-concerto: Stop Making Sense.

Se hoje os épicos HOMECOMING: A Film by Beyoncé (2019) e Taylor Swift: The Eras Tour (2023) ganharam rapidamente o mundo, foi porque Talking Heads decidiu documentar sua sequência de shows da forma mais Talking Heads possível. O Pantages Theater recebeu, entre 13 e 16 de Dezembro de 1983, talvez uma de suas experiências musicais mais sinestésicas, que foram domadas nas câmeras pelo diretor em ascensão Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes e Philadelphia).

Cena de Stop Making Sense. Nela vemos David Byrne, um homem branco de cabelos pretos. Ele veste uma camisa cinza e um terno cinza, que é duas vezes maior que seu tamanho. Ele está segurando um microfone com a mão esquerda e aponta ele em direção a câmera. Ao fundo, as backing vocals da banda Talking Heads, da qual Byrne faz parte.
Em 2023, a produtora A24 adquiriu os direitos e restaurou a obra em 4K (Foto: Arnold Stiefel Company)

Retratando a turnê de despedida da banda na divulgação do álbum Speaking In Tongues – que apesar de não ser a última obra do grupo, foi a última vez que eles excursionaram – Stop Making Sense acerta ao entender, ao mesmo tempo em que define, o conceito de performance. A estética de Teatro nua e crua, dá toques de Hamilton para a produção muito antes de Lin-Manuel Miranda vasculhar os documentos da independência americana. Dessa forma, ela é até hoje a única que conseguiu replicar o melhor de dois mundos entre um show e um musical.

O filme-concerto não nasce pronto e roteirizado como os exemplos que temos com as divas pop. Pelo contrário, a produção se constrói aos poucos por aqui, desde a construção do cenário, que não tem vergonha de mostrar os contrarregras e equipamentos pra lá e pra cá, até a interação de Byrne e banda com a câmera e público, fluindo sempre de forma muito natural e crescente.

Cena de Stop Making Sense. Nela vemos Tina Weymouth, uma mulher branca de cabelos loiros, Edna Holt, uma mulher negra de cabelos crespos, Lynn Mabry, uma mulher negra de cabelos crespos, David Byrne, um homem branco de cabelos pretos e Alex Weir, um homem negro de cabelo afro. Todos vestem uma roupa toda cinza. Tina usa um vestido, Edna e Lyyn vestem camiseta saia e meia calça, David Byrne veste terno camisa e calça social e Alex veste camiseta e calça social. Entre Edna e Byrne, há um abajur. Todos estão enfileirados e Alex segura uma guitarra na extremidade direita enquanto Tina segura um baixo na extremidade esquerda.
Apesar de estarem juntos na divulgação do relançamento, os membros da banda descartaram uma reunião (Foto: Arnold Stiefel Company)

A fotografia de Jordan Cronenweth (Blade Runner) é extremamente inventiva e consciente ao optar por tirar o espectador de seu lugar comum. Aqui, não há aquele tratamento estático de cena onde o público está distante do artista de alguma forma. O que Stop Making Sense faz é colocar a audiência juntamente no palco, como se fosse mais um membro da banda participando daquela jam, interagindo com seus companheiros, desviando dos fios e pedestais.

Essa escolha é potencializada através do carisma da banda, que tem tanto o público do Pantages Theater como a audiência de casa na mão. David Byrne está tomado por devaneios e todos os integrantes têm uma sintonia descomunal, que mostra como eles não estão somente fazendo Música, mas sim vivendo ela de maneira única e visceral. Aliás, a escolha de que cada faixa introduza os participantes do grupo é extremamente acertada. Por mais que o Talking Heads tenha Byrne como garoto propaganda, todos brilham e direcionam sua superlatividade em um final apoteótico com Crosseyed and Painless

Cena de Stop Making Sense. Nela vemos David Byrne, um homem branco de cabelos pretos. Ele veste um terno duas vezes maior que ele, camisa cinza e calça cinza. Ele está com as duas mãos levantadas e o corpo levemente arqueado, pois está dançando. Ao fundo, um palco.
O clássico terno gigantemente desproporcional virou marca registrada do longa (Foto: Arnold Stiefel Company)

Assistir Stop Making Sense é como entrar na cabeça falante de cada integrante, não para ouvir uma gritaria desenfreada, mas o eco de um talento puro que nem precisou ser lapidado. Por isso, só foi estimulado por músicos que tinham uma conexão neural quando o assunto é Música. O Talking Heads, mesmo após seu fim, ainda reverbera, seja através de como suas músicas resistem ao tempo – a exemplo do álbum tributo, lançado para promover a regravação –, ou como as bandas usam o grupo de influência, indo de Arcade Fire à Radiohead.

Em tempos de performances cada vez mais enlatadas e roteirizadas, com o intuito de arrastar multidões e transformar todo show em uma experiência megalomaníaca de arena, o processo e o primor criativo às vezes se perde, se mascara em estruturas gigantescas ou simplesmente para de fazer sentido. É aí que Stop Making Sense cresce e, paradoxalmente, faz todo o sentido, pois é somente o Talking Heads sendo ele mesmo, nada mais do que isso, ao mesmo tempo que tudo isso.

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