Gabriel Leite Ferreira
Raw Power era o disco favorito de Kurt Cobain. Não à toa: lançado em 1973, o manifesto definitivo dos Stooges pode ser considerado o primeiro álbum punk da história, anos antes das bíblias do gênero. Mas nem isso, nem o axioma recorrente “trilha sonora do fim do mundo” fazem jus a ele. Não totalmente.
Eu sou um guepardo caminhando com um coração cheio de napalm
Eu sou um filho fugitivo da bomba atômica
Eu sou o garoto esquecido do mundo
Aquele que persegue e destrói
Entre as bandas norte-americanas clássicas dos anos 70, o Stooges é certamente a mais errática. O grupo teve duas encarnações entre 1967 e 1974, gravou três obras-primas regadas a quantidades homéricas de drogas e acabou engolido pela decadência do vício. Porém, a semente resistiu às intempéries e hoje, olhando em retrospecto, é impossível contar a história do rock sem mencionar o quarteto liderado por Iggy Pop ao menos um par de vezes.
Como é de praxe na arte de vanguarda, os delinquentes juvenis de Michigan não conquistaram sucesso comercial algum durante sua primeira encarnação. The Stooges e Fun House fizeram a cabeça da crítica, mas não ecoaram com intensidade no público. Pra completar, os sérios problemas com drogas dos integrantes forçaram sua gravadora, a Elektra, a demiti-los após o lançamento de Fun House. Com isso os Stooges se separaram, e embarcariam diretamente para a obscuridade não fosse a intervenção de David Bowie.
Um grande admirador da banda maldita, Bowie levou um Iggy afundado no vício em heroína à Inglaterra e conseguiu um contrato como artista solo para ele. De início, Pop pretendia compor um álbum com James Williamson, guitarrista incorporado à sua antiga banda pouco antes do fim. Mas logo ficou claro de quem eles precisavam. Em setembro de 1972, o núcleo dos Stooges – Iggy Pop, James Williamson, Ron Asheton e Scott Asheton – estava novamente reunido e, contrariando todas as expectativas, gravando seu vindouro terceiro disco.
Dance com a batida dos mortos-vivos
Lucy, querida, fique longe da cama
Poder cru vai vir correndo atrás de você
A estreia homônima de 1969, com sua distorção tosca, hinos ao tédio juvenil e apatia à Velvet Underground, soava como os Beatles se eles tivessem começado a usar drogas pesadas já na fase iê-iê-iê. Fun House transformava o tédio em pura insanidade chapada, incluindo aí influências de free jazz e urros selvagens jamais igualados. Em Raw Power, os dois lados encontram um equilíbrio por meio dos riffs de Williamson, mais encorpados que os de Ron Asheton, guitarrista original. Some isso à pressão da gravadora CBS por pelo menos uma balada em cada lado do vinil e quatro viciados sob relativo controle, e temos o álbum mais coeso da curta história dos Stooges.
O primeiro single da banda, tão ingênuo quanto drogado
Curta – e extenuante história. Desde os primórdios, Iggy ganhou notoriedade por suas performances violentas, que incluíam se cortar com cacos de vidro, se cobrir de pasta de amendoim e o famigerado stage diving. A evolução do abuso de drogas só fez dele mais imprevisível, dentro e fora do palco – e os outros membros também não eram flor que se cheire. O “dance to the beat of the living dead” da faixa-título não é apenas uma frase espirituosa sobre a música de Raw Power, é também uma constatação: sem garantias de sucesso comercial, os Stooges reformados eram mortos-vivos.
Mais vivos do que mortos, diga-se. Vítima da mixagem apressada de Bowie a fim de corrigir o parco trabalho do próprio Iggy, Raw Power soa como se estivesse no limite da sanidade: vocal e guitarra compõem a ensurdecedora linha de frente, enquanto baixo e bateria formam a base, discreta mas eficiente. Não é preciso dizer que as vendas foram pífias de novo. Eles seriam demitidos pouco tempo depois e encerrariam a caótica carreira em 1974, aos trancos e barrancos. Mas sua missão estava cumprida.
Um ano antes do disco definitivo, a banda já teve sua marca cravada na música pop com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars. O personagem do divisor de águas de David Bowie era fortemente baseado em Iggy, desde o nome à (falta de) roupa. Bowie refinou a androginia animalesca do amigo para dar forma ao arquétipo definitivo do rock setentista.
No final daquela década, a primeira geração do punk surgiria destilando a mesma energia autodestrutiva dos riffs de Williamson, pais tanto da imundície dos Sex Pistols quanto da pompa barulhenta do Guns N’Roses. Nos anos 90, o Nirvana reafirmaria o vanguardismo de Raw Power com In Utero, um dos álbuns mais cáusticos já gravados por um grupo mainstream. A escolha de Cobain pela produção sem concessões e a interpretação visceral tem raiz direta na sonoridade agressiva do seu disco preferido.
Dê-me perigo, estranha
E eu sentirei sua doença
Não há nada em meus sonhos
Só memórias feias
Beije-me como a brisa do oceano
É fácil e até mesmo lógico resumir o poder da obra-prima dos Stooges à guitarra de Williamson em conjunção com o vocal de Pop. Comete-se aí uma falha comum: as letras são ignoradas. Os versos de Raw Power contam muito sobre a trajetória dos Stooges e sobre o próprio Iggy, mas sem a couraça de inconsequência juvenil dos álbuns anteriores – em Fun House, sua interpretação já ganhara tons mais dolorosos, mas a proposta era mais descontraída. Aqui, sangra para ser amado, expondo uma ferida aberta e sem cura.
Já no hino “Search and Destroy” a faceta sensível é explícita: Querida, você tem que me ajudar, por favor / Alguém salve minha alma. A faixa-título transborda ansiedade, desde o riff engasgado aos clamores finais: Eu só quero saber / Você consegue sentir?!. A crueza com que Iggy canta confirma, mais uma vez, a complementaridade entre voz e guitarra. As cordas de Williamson sangram tanto quanto as palavras. O poder cru é sentimental.
A urgência é palpável em cada um dos trinta minutos de música. Nos momentos mais violentos, como “Your Pretty Face Is Going To Hell” e “Penetration”, o mote sexo, drogas e rock’ n’ roll chega a seu auge: sexo selvagem, drogas pesadas e rock ’n’ roll ensurdecedor como forma de escapar da irremediável solidão.
Nas duas baladas supracitadas, Iggy se entrega à carência, e os pedidos de socorro não cessam. Em “I Need Somebody”, um blues paranoico, clama por uma companheira, mas avisa: Querida, eu vou te manobrar errado. Em “Gimme Danger”, a autodepreciação é ainda mais profunda e a vontade do eu lírico chega às raias do sadomasoquismo: Se você for minha mestra / Eu farei qualquer coisa. A obliteração do sujeito é sintomática do estilo de vida que Iggy levava à época, que quase o matou.
Montanhas de drogas e turnês caóticas eram comuns até o padecimento da banda em 1974. Depois, o frontman se transformou em uma parte viva do folclore da cena de Nova York, mal sobrevivendo com a ajuda de alguns poucos amigos, entre eles o próprio Bowie. Não fosse o auxílio do camaleão, seria difícil imaginar uma vida longa para Pop. Felizmente, ele ressurgiu e segue trabalhando com o mesmo tesão no alto dos seus 70 anos.
Querida, nós estamos entrando pra história
Venha comigo na minha viagem de morte
Ninguém, nem mesmo Iggy, imaginava que os Stooges sobreviveriam para contar sua história no século 21. “Death Trip”, a última canção de Raw Power, seria cômica se não fosse trágica. Nas palavras do vocalista: “A letra sou eu dizendo ‘eu sei o que vai acontecer com a gente, eu sei o que a gente tá fazendo, e eu vou cantar sobre isso’” . Um epitáfio muito adequado para os Stooges.
Eles sobreviveram relativamente incólumes às décadas seguintes, com exceção dos baixistas Dave Alexander e Zeke Zettner, mortos ainda na década de 1970. Iggy se tornou um artista solo produtivo, os irmãos Asheton seguiram tocando em diversas bandas da cena de Detroit e Williamson se formou em engenharia elétrica. Em 2007, o trio original e o baixista Mike Watt (Minutemen) se reuniu e gravou The Weirdness. Dois anos depois, Ron Asheton faleceu devido às complicações de um ataque cardíaco e Williamson retornou a seu posto. Em 2013, a banda gravou seu último disco, Ready to Die.
Nos anos seguintes, as mortes de Scott Asheton e Steve Mackay, saxofonista que participou de Fun House, colocaram um ponto final definitivo nessa história, coroada com o documentário Gimme Danger, de Jim Jarmusch.
Levando isso em conta, não é surpreendente a sobrevida de Raw Power. De fiasco a clássico incontestável bastaram alguns anos, mas Iggy ainda não havia descansado de sua death trip. Para o relançamento do álbum em 1997, tratou de remixá-lo da maneira como havia feito originalmente, sem a mão de Bowie. O resultado estabeleceu novos parâmetros para a infame loudness war. Se antes a banda soava à beira da insanidade, a nova versão, com vocal e guitarra no talo, soa como um psicopata terminal. Hipérboles à parte, o remix foi uma evolução e tanto, e é a melhor pedida para experimentar o poder cru em toda sua plenitude. Anárquicos 45 anos depois, continua irretocável. Can you feel it?!