(Foto: Reprodução)
Fellipe Gualberto
“Se você venceu uma luta, é como se não houvesse problema algum em se estar em uma luta”. A frase dita pela criadora de Steven Universe em uma entrevista ao LA Times resume muito bem sua filosofia e os ensinamentos de sua obra. Finalizada em maio com Steven Universe Future (SUF, ou como ficou conhecida por aqui, Steven Universo: O Futuro), esta última temporada radicaliza as lições da desenhista em uma conclusão após 6 temporadas, um filme e 7 anos.
SUF, a série limitada de 20 episódios, se passa em um universo totalmente novo comparado com seu antecessor. Se situando após o final da série original, no qual as gems corrompidas foram curadas, e após o filme, no qual a galáxia está em paz depois do fim do reinado das Diamantes. Além disso, Steven agora tem 16 anos, o que dá um estilo “Shippuden” a nova produção.
Agora é a vez de acompanhar a adolescência do personagem que, como todo adolescente, está passando por problemas com a família e consigo mesmo. Depressão, estresse e trauma são os verdadeiros vilões dessa temporada, e Steven precisa enfrentá-los para não se tornar um monstro (literalmente).
Apenas quando as gems colocaram o garoto contra a parede e o confrontaram ele finalmente vira um monstro, pois não consegue mais fugir de si mesmo (Foto: Reprodução)
Como já era de se esperar, estes temas são abordados de forma extremamente delicada e carinhosa, assim como nas temporadas anteriores. Steven Universe Future trata a saúde mental com metáforas e tenta se tornar compreensível para as crianças ao mesmo tempo que causa empatia em adolescente e adultos.
Em suas tentativas de suprimir o trauma, Steven brilha cor de rosa, mostrando as emoções escondidas borbulhando dentro dele. Na busca por soterrar seus problemas, o menino tem contato com soluções mágicas como o novo poder da Diamante Azul. As antigas lágrimas de Diamante, antes causadoras de sofrimento, agora se sublimaram em nuvens que entregam alegria ao nosso protagonista.
As nuvens da Diamante Azul podem até ser uma solução fácil para o Steven, e o fazer se sentir melhor, mas não o fazem ser melhor. Na verdade nada pode ajudá-lo enquanto continuar se comportando como o cactus vivo criado por ele, que implora por ajuda, mas o machuca com todos os seus espinhos ao chegar perto.
Os poderes de Steven de criar plantas com vida refletem suas emoções nesse momento, assim como todos seus outros poderes (Foto: Reprodução)
SUF teve sua narrativa condensada em poucos episódios, seguindo a tendência da temporada anterior. A série teve um começo devagar, no qual seu universo foi introduzido, seguido por episódios fillers, como “A Very Special Episode” e “Snow Day”. Estes dois podem ter focado em atender pedidos dos fãs (como explorar as fusões com Steven), mas também acrescentaram informações na construção emocional dos personagens. De certa forma, todos os capítulos apresentados tiveram sua importância, talvez a única falha no ritmo desta temporada esteja no vilão final ter sido derrotado muito rapidamente.
Steven estava impossibilitado de encontrar a felicidade e de ver como era amado pelas pessoas ao seu redor, porque se enxergava como um monstro. A cura veio através do amor e da aceitação de seus próximos, aqueles que ele mesmo acolheu em temporadas passadas.
Esse final não é surpresa para quem acompanha a série desde o começo, os ensinamentos de Rebecca sempre estão focados na não-violência, na aceitação, e no fato de que todo vilão pode ser um amigo. Lutar é traumatizante (como foi citado no começo do texto) e toda a jornada até este ponto deixou marcas em Steven. O personagem é curado através da presença daqueles que o ama e fecha o arco que sua mãe foi incapaz de cumprir.
No primeiro episódio da primeira temporada, Steven canta uma música do comercial do seu doce favorito, Cookie Cat. Essa música conta a história de um personagem que é “um refugiado de uma guerra estelar que deixou sua família para trás”. Depois que todo o desenho acaba você pode perceber o foreshadow – uma insinuação de futuras partes da trama. Essa é a história da Diamante Rosa, mãe do Steven e maior razão de seus traumas.
Devido a incapacidade da família de Diamante Rosa de aceitá-la como ela era, a mãe de Steven assumiu uma identidade falsa, Rose Quartz, e depois forjou a própria morte. Uma refugiada de uma guerra estelar, que deixou a família para trás. Aqueles que a criaram foram incapazes de perceber o quanto machucavam e a faziam infeliz através de repressão. Diamante Rosa preferiu fugir a enfrentar sua família, os deixando machucados também.
Ao final de SUF, novos Cookie Cats são comidos e a mesma música é cantada. Desta vez é mostrado como Steven, que carrega os fardos de sua mãe, a redime ao enfrentar seus problemas ao lado da família, e não fugindo e os deixando pra trás. Apesar de que agora ele está de mudança deixando a cidade.
Essa última temporada soube manter acertos da série original e concertar outros erros. SUF chama atenção por seu traço se mostrar mais caprichado e superior ao das anteriores. As primeiras temporadas da série tinham a fama de manter inconstâncias gritantes nos tamanhos dos personagens, nunca deixando claro a altura de nenhum deles, e agora é possível ver que isso foi solucionado. Por outro lado, as músicas durante os episódios, que desde o começo chamam a atenção pela qualidade, também permaneceram nessa temporada, e mantiveram o padrão.
Steven Universo significou muito para a animação ocidental, mas podia ter significado ainda mais. A série foi vítima de inúmeros boicotes ao longo destes sete anos, seja por hiatos anormalmente longos, postagem do episódio no site e app do Cartoon Network antes de seu lançamento na televisão (minando a audiência), ou até mesmo por censura explícita de algumas cenas em países mais conservadores.
Até que em meados de 2019, o ultimato veio. Rebecca Sugar disse em um painel organizado pela livraria Barnes and Noble que se viu obrigada a mudar a narrativa do desenho de maneira que não fossem mais feitas referências a comunidade LGBT, ou acabar com sua produção. Isso devido o fato de que certos países iriam parar de contribuir com o fundo internacional que financiava seu trabalho se a narrativa se mantivesse.
A Rússia é um dos países que mais censuram as cenas com conotação LGBT em Steven Universo, se a Rússia censura a Rebecca, a Rebecca censura a Rússia (Foto: Reprodução)
Rebecca, uma mulher bissexual e não binária, deixou uma marca incrível na animação ocidental, escancarando as portas para a comunidade LGBT entrar neste mundo. O mérito é todo dela desde que a artista era roteirista em Hora de Aventura, no qual ela desenvolveu o relacionamento entre Jujuba e Marceline, sempre entrelinhas e debaixo dos panos, com um único beijo no último episódio.
O filme e Steven Universe Future, a última temporada, vieram depois de muita insistência, para fechar algumas pontas abertas, mas nem todas. Os fãs ficaram sem saber o que havia nesse baú (Foto: Reprodução)
A voz de Rebecca Sugar ainda ecoa, seja através do primeiro beijo gay que foi visto em Star vs As forças do mal, ou através de She-ra, de Noelle Stevenson, que tem nítidas inspirações em Steven Universe e continua seu legado. A militância sem violência da autora conseguiu trazer o amor para as telas, e mostrar para as crianças que suas existências são possíveis, através da representatividade. Sua animação é uma manifestação no mundo real de seus ideais, e de toda a luta de Steven, que continua viva.
Enquanto houver LGBTfobia, a memória doce de Steven e Rebecca ainda vai ecoar, convocando uma luta, não com armas, mas com amor. Talvez assim um dia poderemos dizer “Here we are in the future and it’s bright, nothing to fear, no one to fight”.