Marina Ferreira
“Acho que você nasce no Brasil, você tem que ouvir Acabou Chorare”. É com essa frase certeira e carregada de brilho no olho que Letrux abre o décimo vídeo da série Replay, traduzindo em pouquíssimas palavras a grandiosidade do álbum que é, até hoje, considerado pela revista Rolling Stones como o maior disco brasileiro de todos os tempos. Com um título dessa importância, é natural que Acabou Chorare, o clássico dos Novos Baianos de 1972, seja também um dos maiores influenciadores daqueles que trazem consigo a missão de manter viva a MPB, ou como recentemente intitulada, Nova MPB.
É justamente em nome dessa missão, e de mãos dadas com esses representantes da nova geração de artistas brasileiros, que a Som Livre em parceria com a Barry Company decidiu que seria uma boa hora para reviver o clássico e dar novas vozes a canções atemporais. Canções essas que atravessaram gerações e deixaram sua marca na memória brasileira, afinal, quem nunca se pegou cantarolando Preta Pretinha?
Por sua riqueza sonora e coragem de explorar novos caminhos, Acabou Chorare pode ser interpretado não somente da forma como foi gravado, mas também imaginado a partir de todos os caminhos que poderiam ser seguidos em cada faixa. E isso permitiu ao diretor José Francisco Tapajós, responsável pelo projeto, a ousadia em escolher os artistas que levariam em frente esse legado, passeando pelo rock, reggae, pop, samba e até mesmo a percussão afro-beat. Graças a essa mistura, o resultado entregue foi nada menos que um clássico parte dois, um Acabou Chorare para a geração que vem por aí.
A faixa de abertura, Brasil Pandeiro, foi entregue à banda Francisco El Hombre, conhecida por suas misturas de ritmos, entre os tipicamente brasileiros, as guitarras do rock n’ roll e as sonoridades mexicanas trazidas pelos irmãos Sebástian e Mateo Piracés Ugarte. A música, um samba composto nos anos 40 para exaltar o povo brasileiro na voz de Carmen Miranda e posteriormente gravada pelos baianos, ganha novas cores e ritmos nas vozes de Juliana Strassacapa e os irmãos Ugarte, e na guitarra excelente de Andrei Martinez Kozyreff. O quarteto brincou com os timbres e os tempos de letra e melodia, levou sua sonoridade característica e transformou Brasil Pandeiro em uma canção ainda mais viva, capaz de animar uma pista de dança sem nenhuma dificuldade, imprimindo a qualidade já vista em seus trabalhos anteriores.
E quem poderia imaginar Preta Pretinha em reggae? Pois José Francisco Tapajós imaginou e tomou uma decisão acertadíssima ao trazer a banda mineira Onze:20 pra regravar aquela que é talvez a canção mais conhecida do Acabou Chorare. Na voz um tanto rouca de Vitin, o vocalista do grupo, a guitarra afinada de Chris Baumgratz e sem perder o ritmo característico do gênero, a canção mantém sua essência. É possível distinguir ali todos os traços de Onze:20 e dos Novos Baianos, uma mistura nada impossível, que brinca novamente com sonoridades que muito bem poderiam terem sido escolhidas pelos baianos no Cantinho do Vovô e abre a possibilidade para imaginar outros clássicos traduzidos para o ritmo. Como seria Panis Et Circenses em reggae? Talvez um dia tenhamos uma resposta.
A terceira faixa do álbum é Tinindo Trincando, a psicodelia aflorada dos baianos e ninguém melhor que Céu para repaginar a canção. A cantora, que ano passado foi considerada a mais influente de sua geração, bebe de diversas fontes para o update, trazendo sintetizadores e batidas da música afro eletrônica, com inspirações nos anos oitenta e destaca a voz da cantora, tão marcante quanto a de Baby do Brasil, uma das referências para Céu. Novamente, é possível encontrar os pontos da personalidade do artista convidado e as claras referências à versão original, cumprindo assim um dos maiores desafios das regravações: o respeito com o clássico e a criação do novo.
“Essa magia que envolve os Novos Baianos representa um Brasil”.
Em Swing de Campo Grande, ninguém melhor que os novos e populares Gilsons para reler e reinterpretar a canção alegre e dançante. O trio formado por José, João e Francisco Gil, respectivamente filho e netos de Gilberto Gil, traz sua identidade para a música, levando o Campo Grande diretamente para a beira do mar num fim de tarde de música e sol. Com suas vozes suaves e instrumentos de sopro e percussão, saímos do Cantinho do Vovô em Jacarepaguá e pegamos a estrada em direção à Salvador, imaginando o que teria sido da canção caso tivesse surgido em clima praiano. Em mais uma das muitas escolhas acertadas Replay, Gilsons reafirma qualidade, tanto no vocal quanto instrumental, e imprime sua personalidade em uma das melhores versões do disco.
“Acabou chorare”, foi o que Bebel Gilberto disse para seus pais, João Gilberto e Miúcha, ao cair e começar a chorar. Misturando o português e o espanhol, resultado de ter sido educada nas duas línguas, a criança surpreendeu os dois adultos e serviu de inspiração para Luiz Galvão e Moraes Moreira nomearem o álbum e escreverem a música, tão suavemente cantada em sua versão original e lindamente regravada por Maria Gadú, que manteve a delicadeza da canção ao mesmo tempo em que ousou em batidas mais fortes. Seu fiel violão aparece na companhia de um baixo e guitarra, sendo acompanhamentos perfeitos para a voz um tanto chorosa de Gadú, emocionada pela morte recente de Moraes Moreira. A forma como a faixa foi reinterpretada é o encerramento perfeito para o lado A do disco, que mesmo em sua versão digital não deve ser ouvido como uma coisa só, e abre caminho para o lado B, tão surpreendente quanto seu antecessor.
Encarando de frente o desafio de abrir o lado B do disco, a sanfona de Marcelo Jeneci e a maior transição de sonoridades do Replay marca a canção Mistério do Planeta, muito bem conduzida em sua versão adaptada ao mundo pandêmico e cada vez mais misterioso. Com elementos referentes ao funk, sobreposições de vozes e efeitos alusivos à viagem planetária da canção, Jeneci traduz os diversos sentimentos da letra para a melodia e desperta uma curiosidade em imaginar Paulinho Boca de Cantor interpretando a versão ousada de sua canção mais marcante do disco.
Por falar em ousadia, que parece ser a palavra mais usada para definir o Replay, somos guiados para a sétima faixa do álbum e que surpresa é ouvir sons eletrônicos e a voz suave de Xênia França conduzindo uma versão mais lenta de A Menina Dança, clássico que nos acostumamos a ouvir na vozes de Baby e Marisa Monte. A surpresa logo abre espaço para a felicidade e nos três minutos e dezoito segundos de duração, Xênia nos envolve em seu ritmo e encanta com seu sotaque que parece saborear a letra, reafirmando que existe mais de um jeito certo para interpretar a canção.
O samba chega no Replay Acabou Chorare através de João Cavalcanti, o ex-vocalista do grupo Casuarina, que trouxe a alegria de Besta é Tu, mantendo sua identidade musical nos instrumentos e preservando elementos fundamentais da versão original, como a divisão dos versos e o tempo bem pontuado. Não satisfeito com uma belíssima homenagem ao regravar a canção com tanto respeito, João acrescentou no final uma citação sua, um agradecimento aos baianos que tanto influenciaram a música brasileira. Um agradecimento escrito por ele, mas que poderia ter sido escrito por qualquer um de nós.
“Pois besta é tu que pensa que eu não posso ser baiano só porque eu nasci no Rio. Pois eu sou um novíssimo baiano há muito tempo e só sou o que sou por causa de Moraes, Baby, Pepeu, Paulinho, Dadi e Galvão.”
O solo de cavaquinho tocado por Jorginho em Um Bilhete para Didi ganha não apenas uma nova interpretação no Replay, mas nova roupa e personalidade, com a percussão baiana do grupo Afrocidade repaginando completamente a canção. Um instrumental poderia facilmente se tornar irreconhecível ao ser tocado de outra forma, mas não foi o que aconteceu na nova versão, pois para o bom ouvinte do Acabou Chorare, é possível reconhecer cada nova fase da música, que passa por diversas transições em seu caminho e marca o começo do fim do disco.
A faixa final ficou a cargo de Letrux e Iolly Amâncio, duas vozes que se encontram na reprise de Preta Pretinha e se completam em suas diferenças e similaridades. Na canção, é possível distinguir elementos trazidos por cada uma, como os sintetizadores de Letrux e a batida forte de Iolly, assim como conseguimos distinguir o que vem diretamente dos baianos. Há um quê de saudade na forma como “abre a porta e a janela” é cantada na canção e a mudança repentina para o funk surpreende para deixar um sorriso no rosto, de coração feliz por mais versão excelente, que encerra o disco com o gostinho de quero mais, já conhecido da versão original de Acabou Chorare.
Como disse Elis Regina em Imagem, “mais que nunca, é preciso cantar o que é nosso”. Em tempos de crise como os que vivemos, é fundamental mantermos vivos os grandes ícones que forjaram o que nós entendemos atualmente como a música brasileira. Não somente a dita MPB, mas a música feita no país, que traduz a nossa cultura, nossos valores e a nossa história.
Acabou Chorare é um desses grandes representantes do que é nosso e ao reinterpretar o disco de forma tão genial, atual e acima de tudo respeitosa à versão original, o projeto Replay afirma sua importância nesse cenário, abrindo espaço para novas reinterpretações que poderão ajudar nessa luta para manter vivo o que temos de mais precioso no nosso Brasil: a nossa cultura.