Aryadne Xavier
Que Beyoncé se consolidou como uma das mais importantes figuras do cenário pop nas últimas duas décadas, todo mundo já sabe. Citar o nome da cantora é a porta de entrada para conversas sobre singles que marcaram épocas e provaram como a Música pode ir além de qualquer fronteira física, se espalhando pelo globo. Seu trabalho artístico, que começou com o grupo Destiny’s Child e progrediu para uma carreira solo no início dos anos 2000, evoluiu a cada novo lançamento, criando a expectativa da mídia e dos fãs ao redor de todo novo passo da vocalista. Em Renaissance, Beyoncé alcança o seu próprio renascimento, provando como uma artista que vivenciou todas as mudanças da indústria fonográfica nos últimos 30 anos consegue se manter relevante, atual e soar ainda mais potente em suas criações.
Beyoncé Giselle Knowles-Carter, amplamente conhecida apenas pelo seu primeiro nome, já era vencedora do Grammy quando lançou seu primeiro disco solo, Dangerously in Love (2003), e, dentro dele, uma de suas faixas mais memoráveis: Crazy in Love. A canção, feita em parceria com seu esposo, o rapper Jay-Z, ficou oito semanas no topo das paradas norte-americanas e rendeu outros dois gramofones à cantora. Porém, seus feitos na indústria musical são muitos e ultrapassam o topo dos charts com a versatilidade de suas canções que vão do pop ao R&B, a inovação em clipes, o posicionamento político, a propagação de toda uma cultura e a revolução na forma de lançar e consumir Música que se iniciou com o lançamento de sua obra homônima. Seis anos depois de seu último álbum, Lemonade, ela retorna com um projeto novo, “uma jornada linda de exploração” visual, lírica e sonora.
Lavando-se de seus pecados e transicionando sem medo pelo rap e soul, I’M THAT GIRL ostenta que não são os diamantes, nem as pérolas, nem o nome de seu esposo, Queen Bey é a melhor no que faz e quer transpor esse orgulho para quem a escuta. Nesse momento de abertura do disco, é interessante notar como a estruturação da obra passa por tríades, a combinação perfeita para contar, em partes, uma narrativa. O primeiro agrupamento ainda conta com uma linha de baixo marcante e agitada em COZY, sendo um manifesto de como ela se sente confortável em sua própria pele. Ao interpolar trechos do vídeo de Ts Madison, “B**ch I’m Black”, Beyoncé reivindica e afirma sua identidade como uma mulher negra, discurso que permeia a obra como um todo.
E Renaissance se mostra muito maior do que qualquer expectativa com ALIEN SUPERSTAR: uma experiência auditiva que guia o ouvinte por diferentes atmosferas em um espaço temporal curto, mas libertador. A canção que se inicia com trechos de “Moonraker”, sucesso nas noites de 1998 de Nova Iorque, utiliza com originalidade o conceito de “Unique” ao afirmar que ela é a número um e deságua em um refrão que interpola “I’m too sexy”, de Right Said Fred, resgatando seu conteúdo para a negritude e caráter queer da dance music. A presença do voguing é quase palpável a cada batida marcada.
Outra tríade do disco que merece atenção é enérgica e capaz de colocar o ouvinte no ritmo marcante dos baixos e sintetizadores. Com um trabalho vocal fenomenal que se expande em várias faixas de gravação, CUFF IT aparece desinibida e simpática. A presença sensual e marcante da voz, trabalhada em diferentes nuances, torna esta uma das, se não, a canção de maior sucesso no álbum. Suas batidas finais nos guiam a ENERGY e a familiaridade com o refrão não é por acaso. A utilização do sample de “Milkshake”, da cantora Kelis, pode ser mais fácil de ser reconhecida, mas a interpolação com “Oh La La La”, de Teena Marie, e a finalização com “Explode”, de Big Freedia, tornam a transição para BREAK MY SOUL uma experiência explosiva. Com as batidas de “Show Me Love”, esse é o ápice do bloco, uma celebração ao house music dos anos 90 e à vida.
Em meio as composições de HEATED e THIQUE, o destaque aqui é direcionado a faixa MOVE. Beyoncé nos apresenta um encontro interessante: ela mesma como representante do presente, Grace Jones, ícone da cultura negra e queer do passado e a jovem Tems, como uma promessa desse legado para o futuro. Com batidas bem marcadas, a composição das rimas dita seu próprio ritmo a quem escuta, transitando entre três vozes e deixando ao espectador o papel de alguém presente em uma roda urbana, ouvindo essa apresentação. Ao citar o Bruk Up, Jones escancara as referências da cultura jamaicana e integra o propósito de resgate histórico, dando nome a mais uma fonte de inspiração.
Em um dos blocos que mais criou divisões nos sentimentos de quem escuta, Bey expõe um lado mais sentimental e menos agitado, como se ela afirmasse que o momento agora é apenas escutar o lado dela e sentir. Em CHURCH GIRL, a cantora se liberta das amarras de sua culpa cristã e afirma como ninguém, além dela, pode a julgar. Já em PLASTIC OFF THE SOFA, um R&B leve e gostoso de ouvir, ela se declara ao homem com o qual divide a vida, revelando que toda especulação envolvendo “Becky with a good hair” já foi superada por ela. Na maior faixa do álbum, VIRGO’S GROOVE, um disco-funk cria uma atmosfera de romance a partir de texturas, nuances e batidas que a tornam única. Eleita a melhor canção do álbum pela crítica especializada, seu fluxo continua agradável e dançante por incríveis seis minutos, não caindo na mesmice ao seguir em improvisos.
Quebrando a sequência de trios e apostando em duas peças únicas, o disco introduz ALL UP IN YOUR MIND, que se caracteriza como uma faixa experimental. Com a participação de A. G. Cook, a expectativa em descobrir qual gênero musical a cantora mergulharia aumentou, e o resultado foi uma canção com raízes no passado em suas batidas e uma experimentação que mira o futuro. Com a irreverente AMERICA HAS A PROBLEM, é notável o transporte para as décadas de 80 e 90, que remonta aos brasileiros batidas do tradicional funk carioca. É automático querer a resposta para problema americano apontado pela letra, especialmente, considerando lançamentos anteriores de cunho político, mas a surpresa é encontrar um motivo ímpar em seus versos: uma música auto-referencial, com uma batida contagiante que reafirma a grandiosidade de quem a interpreta.
Com PURE/HONEY, sua referência à Ballroom fica ainda mais exposta com a junção de três samples em sua construção: “Feels Like”, “Cunty” e “Miss Honey”. A inclusão de pessoas da cena que formaram o escopo de quem a artista é hoje pode ser percebida em diferentes trechos de praticamente todas as músicas, mas o maior fica para o final. Em SUMMER RENAISSANCE, a presença de Donna Summer é palpável com “I Feel Love”, não diluída em outras batidas, reverenciando a grandeza desse clássico. O encerramento do disco, no entanto, não é o seu fim: Renaissance nasce como um primeiro ato de três planejados nesse novo projeto da cantora. Sua estreia estrondosa não poderia ser ignorada: alcançando um bilhão de streamings no Spotify e primeiro lugar em 100 países no Apple Music no dia de seu lançamento, o álbum rendeu a intérprete mais nove indicações ao Grammy.
Mesmo tornando-se a mulher mais premiada dentre todas as edições com 32 gramofones, Beyoncé não alcançou o patamar desejado aos requisitos da premiação, o que ressoa como uma afirmação de que, para a Academia de Gravação estadunidense, ela é boa, mas não o suficiente para o Álbum do Ano. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que isso aconteceu com a cantora, que já perdeu a categoria anteriormente com os álbuns I Am… Sasha Fierce (2008), Beyoncé (2013) e Lemonade (2017). Em uma análise até mesmo rápida, é possível notar algo em comum entre todos os ganhadores, que diz além da qualidade de suas produções e transcende a própria Bey. Em uma indústria racista, para chegar ao ato de Lauryn Hill de 1999, torna-se necessário ser três vezes (ou mais) melhor em tudo, mesmo 24 anos depois.
Contudo, por mais apurada e cuidadosa que possa ter sido sua seleção, Beyoncé não estava ilesa aos erros. Durante o ato de lançamento, a quinta faixa de Renaissance, ENERGY, ficou entre os assuntos mais comentados não apenas pela sua qualidade, como também pelos comentários da cantora da gravação original que foi interpolada na música. Após o pronunciamento público de Kelis (e aqui vale dizer que Beyoncé havia comprado os direitos da música com seus produtores, logo não constava nenhum problema legal em seu uso), uma reviravolta interessante aconteceu. 20 anos depois do lançamento de Milkshake, ela finalmente foi creditada como compositora, fortalecendo, mesmo que indiretamente, o exercício de resgate histórico do trabalho como um todo.
Outra questão de aguardo e dúvidas gira em torno dos visuais desse novo trabalho. Após lançar o vídeo intitulado como teaser oficial, oferecendo um gostinho aos fãs do que poderia estar por vir, e um segundo trailer repleto de diferentes figurinos e cenários, estimulando o pensamento de muitas adições a sua videografia, Bey pareceu esquecer de lançá-los. Ao se tornar referência e reestruturar a indústria pop como algo que se apoia no pilar de videoclipes bem planejados e que caminham lado a lado do resultado sonoro, a expectativa de ter algo para se deslumbrar visualmente foi colocada lá para cima. E, talvez comprovando que nem tudo é como se espera, os fãs continuam aguardando, há meses, por um produto que nem sabem se existirá mesmo.
Independente de sua performance em premiações, o trabalho de resgate histórico e reconhecimento realizado no disco é seu maior triunfo: utilizando sua visibilidade, Beyoncé aponta e certifica a influência de quem a precedeu. O uso de samples para a construção da identidade sonora do álbum (e a devida creditação) utiliza da nostalgia de batidas já conhecidas do público para criação de algo novo, que é aceito sem muitas dificuldades pelo sentimento de familiaridade. A referência a cultura Ballroom em suas fotos promocionais, utilizando de sua vestimenta e maquiagem inspiradas em ícones como Crystal LaBeija e Moi Renee, é uma esforço consciente de trazer o enfoque a quem fundou algo muito maior. É reconhecer e engrandecer diversos nomes da cultura negra e LGBTQIA+ que foram apagados, esquecidos e marginalizados por tanto tempo.
Em Renaissance, a artista demonstra, mais uma vez, seu talento e genialidade, proporcionando um passeio de quase uma hora de duração por diferentes gêneros e estilos, e ilustrando a engenhosidade ao encadear as músicas. A celebração proposta no álbum vai muito além da exaltação ao passado: Beyoncé convida o ouvinte a celebrar quem ele é, a se divertir em uma dança, a reconhecer suas raízes e sua importância no mundo que o permeia. Em um trabalho detalhista, o álbum comprova que muitas mãos, em sintonia e unidas em um propósito, podem construir trabalhos enormes, que vão além de uma experiência sonora.