Ana Laura Ferreira
A melhor parte de entrar em contato com gêneros, ritmos e cantores que não estamos acostumados a escutar é ter uma experiência totalmente nova, que se intensifica de acordo com nossa entrega. E nada seria mais intenso do que Punisher, de Phoebe Bridgers. O disco que concorre a Melhor Álbum de Música Alternativa no Grammy 2021 é uma descoberta transcendental de entrega e história, embalada pela mais perfeita melodia. Novo, fresco e autêntico, ele encanta por elevar a todas as potências sem perder a mão.
Bem iniciado com uma construção de atmosfera que vai dar sequência ao fantástico mundo de Bridgers, a coletânea não hesita em formar um caminho narrativo entre suas faixas. Como crônicas literárias que se unem em um grande livro, Punisher organizou suas músicas em um grande álbum. Talvez seja pretensioso falar, mas a delicadeza e as epifanias empregadas pela cantora em seus “contos” me levam a crer que ela seria uma grande apreciadora das obras de Clarice Lispector.
Assim como a literata, Phoebe transforma vivências rotineiras em poesias e grandes ensinamentos de vida. O seu próprio “cego mascando chiclete” permeia todas as faixas na dicotomia entre o querer e o ser, entre expectativa e realidade. É em Kyoto que ela canta: “Eu queria ver o mundo/Através dos seus olhos até que isso aconteceu/Então eu mudei de ideia”. Assim como Lispector, os momentos de revelação de Bridgers são celestiais, sem se perderem no fantasioso, e acima de tudo cotidianos.
Esse sentimento transcendental de apreciação tem como grande exemplo a trilha Punisher. Calma e caótica ao mesmo tempo, Phoebe traz uma experiência completa a cada nova música, construída com uma autenticidade que vem faltando na indústria. Conseguimos sentir a voz da cantora em meio às narrativas de maneira tão íntima e sincera que nos coloca dentro das histórias ali contadas. Essa sensação de entrega consegue se manter única, assim como os trabalhos, tão autorais e inovadores quanto, de bandas como Daughter.
Entretanto, o que mais chama atenção nas melodias de Bridgers é seu modo de cantar. Ela entoa cada faixa com liberdade e singularidade, moldando o tempo das palavras e se permitindo brincar com as sonoridades. Essa forma de harmonia traz uma estética ímpar que pode ou não agradar o público. Mas apesar do gosto pessoal, as fisionomias surrealistas que a voz de Phoebe toma não podem ser consideradas nada menos do que arte em sua forma mais pura.
Talvez fosse difícil descrever as milhares de sensações que o disco passa se não como a trilha perfeita para se escutar contemplando o nada e sentindo tudo, seja deitado na cama olhando para o teto ou para uma bela paisagem. Assim, o que realmente prende em Punisher não só sua infinidade de qualidades técnicas, mas o poder que ele tem sobre nossos sentidos. Quase como uma viagem, podemos desfrutar um pouco da essência de Bridgers em uma experiência de renovação, porque o “eu” que entra em DVD Menu não é o mesmo que sai em I Know The End.
Apesar de melancólico, Punisher encanta pela mistura de influências de diferentes gêneros que unem os sintetizadores de rock dos anos 1970 em ICU ao violão suave, e quase country, de Graceland Too. Essa mistura apazigua o caos das melodias criando um estilo particular pelo qual Bridgers é reconhecida. Porém, apesar de belo, o excesso de elementos às vezes pode incomodar. Por vezes a simplicidade de músicas como Moon Song são melhor desenvolvidas do que a abundância de Chinese Satellite.
Entre os pontos mais fortes do álbum está a singularidade entre pessoal e universal. As histórias desenvolvidas em cada faixa funcionam com curtas-metragem de diferentes gêneros como romance, drama e até terror, que vistos de longe ganham outro panorama. As conexões são discretas de forma a não atrapalhar as narrativas e ainda construir um todo. Quando Bridgers canta, ao fim de Halloween “Eu serei o que você quiser” e inicia a faixa seguinte com “Eu tenho andado em círculos/Fingindo ser eu mesma”, ela traz a composição para um nível tão pessoal que é quase como se estivéssemos lendo seu diário.
Toda essa construção de histórias e sonoridades abre espaço para que as melodias estejam no mesmo patamar de importância que a voz de Phoebe nas músicas – isso se não estiverem até acima?! As particularidades de sons criam uma atmosfera densa e profunda com ruídos tridimensionais e, assim, mais impactantes. Esse mergulho às profundezas sonoras de Punisher podem ser sintetizado em I Know The End. A mais longa das onze faixas do álbum é também uma montanha russa de sentimentos e emoções.
Chega a ser difícil descrever a experiência, quase metafísica, de escutar esse disco e ter permissão de entrar na mente de Phoebe Bridgers. Para os fãs de ficção científica, Punisher seria algo próximo a The Twilight Zone em questão de elementos, sensações e loucura organizada. Imponente, excitante e atemporal, o álbum é o tipo de obra que escutamos nos sentindo honrados de ter acesso a ela.