Adriano Arrigo
O trio inglês Portishead foi achado em um momento de transição quando eu tinha, mais ou menos, 18 anos. Minha transição foi religiosa. A típica frase “minha religião não permite” era bem clara para mim, mas isso não deixava que eu tivesse no meu Winamp hits como “Glory Box”, “It Could be Sweet” e “Roads”. Por incrível que pareça, esta última me foi apresentada por um menino neopentecostal. Os primeiros toques pesados e melancólicos de Beth Gibbons cantando “Oh, can’t anybody see?” já eram o suficiente para cultivar uma melancolia que eu fazia ligação com o que me acontecia naquele momento. Mas ao final, eu nem sabia exatamente sobre que ela estava falando.
E isso realmente importa? Quantas músicas fazem sentido para nós e não temos ideia do que elas estão dizendo? Talvez isso seja música, afinal. Talvez ainda, isso seja fundamentalmente a minha compreensão de música. Mas eu nunca ouvi Portishead pelo seu peso lírico. Para mim, é como se não houvessem letras. Como você pode separar o agudo da voz de Gibbons dos violinos em “Roads”? Mas se as letras existem no trio inglês, eu nunca fui procurar o que eles tinham a dizer exatamente. Até o terceiro álbum do trio, o Third.
Esteja alerta para a regra dos três
O que você dá retornará para você
Essa lição você tem que aprender
Você só ganha o que você merece
Para quem já escutou o Third, esse verso é famoso. Para quem não, é o verso que abre o disco em “Silence“, proferido por Claudio Campos, mestre de capoeira que mora em Bristol, a mesma cidade da banda. Para mim, que não se importava com as letras, bem, parecia que Beth tinha colocado essa fala na boca do capoeirista para me atingir. E não que justifique, mas chegando na casa dos 20 anos de idade, a parte escrita de Third fazia muito sentido para mim.
Aliás, quando ouvi “Machine Gun” era sobre aquilo que eu sentia. “Eu vejo um salvador, um salvador vem na minha direção”. Minha mudança era espiritual, se é que posso dizer. Estava saindo de uma religião da qual fazia parte de criança. Um salvador – que aqui não é com letra maiúscula – cairia bem naquele momento. “Assustado de mais para sacrificar uma escolha escolhida por mim”. É, era isso.
Sempre achei que “Machine Gun” era a música da minha vida. “Sempre”, quero dizer, nas primeiras vezes que ouvi. Sei que é um exagero, e também sei que eu nunca tinha ouvidos tantas músicas para saber de cara que era essa a música da minha vida. Uma voz presa falando sobre coisas que eu sentia, e que se misturavam com uma parte repetitiva e, ao fundo, um som artificial de destruição.
Aliás, esse “som de destruição” permeia o Third por inteiro. Em “Nylon Smile” ele está ali ruminando, tramando, se fingindo de sonso, mas Gibbons sabe que ele é ardiloso (e eu também). “Eu não consigo ver nada bom, e nada é tão mal. Eu nunca tive a chance de explicar o que exatamente quero dizer”. Bem sugestivo. Em “The Rip” – talvez a faixa mais representativa do disco – as frases iniciais são dignas de um excerto qualquer de Virginia Woolf.
Enquanto ela caminha pelo quarto, perfumada e alta,
Hesitando mais uma vez
E enquanto eu me levanto,
E a amargura que sinto, eu percebo que o amor flui
O embrolho de “The Rip” nada mais é do que os sintetizadores e mais toda a aparelhagem eletrônica que Adrian Utley e Geoff Barrow, os companheiros de longa data de Gibbons, conseguem, há tempos, codificar no Portishead. Mas aqui no Third, eles largaram um pouco o romântico e bagunçado Trip-hop de “Only You”, por exemplo, e se aventuraram em um caminho ainda mais obscuro, mas nunca deixando o peso das relações humanas se tornarem obsoletas dentro da marca que criaram dentro desse estilo musical.
Em Third, não há uma música como “Glory Box” para servir de música de striptease. Seus versos não são fáceis, e seus sons, muito menos. “Small” é, talvez, a única música que remeta aos discos anteriores da banda. É Gibbons falando de algum relacionamento e vinho sob violinos pesados. Mais Portishead pré Third, impossível. Porém, “ele” está lá, esse som dissimulado que faz as melodias serem destruídas e se transformarem em algo novo, ao passo que suja as composições de Gibbons (ele atropela Gibbons ao final de “Threads”).
Isso transforma o Third em um mal-estar. Certos pedaços do disco – porque é quase impossível ouvi-lo pensando que são faixas separadas – são sufocantes. Não se assuste se ao final de “Threads” você estiver torcendo para a faixa se esgotar logo. Todos os solos de ruídos opressivos fazem esse disco ser tecnicamente impecável.
Durante esses anos, fui prestando atenção em cada barulho ou em cada edição que as músicas têm. Por exemplo, eu achei por muito tempo que o meu arquivo de “Silence” estava corrompido, pois ela termina abruptamente. Após ouvir outras versões – em especial, a do Spotify – eu descobri que não, a música é produzida daquela forma, ela termina em seu ápice. Isso quer dizer muito sobre Third e o porque dele ser tão representativo, em especial, para mim. É como se Gibbons e seus comparsas usasse o mal-estar presente em todo o disco para codificar meu espírito de 20 anos.
E talvez isso faça este disco ser, polemicamente, o meu favorito do Portishead. Ele me acompanha desde então, nesses 10 anos, mas que, devido ao recomeço de trajetória que tive naquela época, parece que ele sempre esteve comigo. Passei 10 anos ouvindo-o nas mais diversas ocasiões, desde a preparação de uma janta com amigos até momentos em que eu estava sozinho. Ele sempre me intrigou e sempre me pareceu possível descobrir algo novo nele.
Fiquei surpreso em descobrir ano passado que o disco da Gal Costa de 2011, Recanto, tem estritas semelhanças com Third. Não era muito do fã da artista, mas desde os recentes anos, tenho aberto meu gosto para música legitimamente brasileira. Porém, o que se vê em Recanto é algo que extrapola a MPB, pois trata-se da extinção de instrumentos de cordas e produções grandiosas para uma roupagem completamente contemporânea e minimalista, tal qual Third representou em 2008.
Talvez não seja uma referência direta, mas mostra como Third é tecnicamente visionário nas produções que incorporam somente voz e sintetizadores. Esse conjunto parece uma fórmula infalível para despertar o desassossego que há no íntimo dos que se aventuram pelo terreno desse trip-hop quase industrial. A camada metálica sobreposta à voz de Gibbons parece mostrar que esse ente que paira as músicas não permite que as coisas terminem bem, o que faz ser uma tarefa difícil manter o bom humor neste último disco do Portishead.
Se “Machine Gun” não é mais a “música da minha vida”, isso não faz eu estar menos alinhado ao disco. Em determinada estrofe de “The Rip”, Gibbons questiona se, caso a ternura que ela sente for puxada para baixo, ela deve sucumbir e segui-la. Para mim é uma opção que Gibbons deixa. Em 10 anos, não achei outras pistas que dessem essa resposta, mas religiosamente aprendi a lição proposta ali na faixa 1, afinal de contas, elas foram escritas para mim.
muito bom! o disco, a banda e o texto!