Giovanna Freisinger
“Eu me aventurei e não encontrei nada além de açúcar e violência”. Essas são as palavras de Bella Baxter em Pobres Criaturas após andar pelas ruas de Lisboa sozinha, vendo o mundo com os próprios olhos pela primeira vez. Adaptado do romance vitoriano Pobres Criaturas de Alasdair Gray, com o roteiro assinado por Tony McNamara, a nova obra de Yorgos Lanthimos é um banquete sensorial.
Com cores vibrantes, arranjos musicais provocantes, caracterizações exageradas e elementos surrealistas de ficção científica, o longa é uma experiência audiovisual como nenhuma outra, principalmente diferente de qualquer coisa que vemos nas salas de cinema há tempos. Não à toa, está concorrendo ao troféu de Melhor Filme no Oscar 2024, junto a outras 10 indicações, que também incluem Lanthimos em Melhor Direção e McNamara em Melhor Roteiro Adaptado.
O diretor tem um olho particularmente bom para reconhecer talentos e, mais do que isso, enxergar o potencial de um ator para ir onde ainda não teve a oportunidade de explorar. Essa não é a sua primeira colaboração com Emma Stone, que encarna a protagonista nada comum Bella Baxter. Ela teve um papel importante em A Favorita em 2018, que também recebeu muita atenção das grandes premiações. Os dois trabalharam juntos novamente no curta-metragem Bleat em 2022. É arrebatador o encontro entre dois criativos que falam a mesma língua e, assim, expandem a sua Arte com a parceria.
Interpretar Baxter garantiu à atriz a sua quarta indicação ao Oscar por atuação, concorrendo como uma das favoritas ao prêmio de Melhor Atriz, o que pode significar sua segunda vitória. Stone participou da concepção do longa também como produtora executiva, o que coloca seu nome na corrida pelo troféu de Melhor Filme, sua quinta indicação da carreira.
A personagem é o resultado de um experimento do brilhante cientista Dr. Godwin Baxter, a quem ela se refere apenas como God – uma simbologia bem escancarada. O especialista, interpretado com maestria por Willem Dafoe, se preocupa muito pouco com as considerações éticas envolvendo os seus projetos. Stone alcança um novo patamar em sua carreira ao desenvolver em detalhe, junto ao diretor, os modos de caminhar, se portar e falar de Bella do zero, para então se desprender deles de maneira tão orgânica que a criatura amadurece como uma nova mulher diante dos nossos olhos, sem percebermos a mudança abrupta.
A trama de Poor Things (no original) se passa durante o século XIX, mas o compromisso assumido não é com a precisão histórica, e sim com a construção de um mundo através das lentes da visão da Bella, que está o conhecendo pela primeira vez. A distorção dos cenários e os demais efeitos conquistados pela fotografia de Robbie Ryan através de lentes amplas, com efeito olho de peixe, conversam com o design do set de cores saltadas e elementos futuristas, criado pela direção de arte de James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek. Juntos, somam mais duas indicações ao Oscar em suas respectivas categorias: Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte.
Todos os elementos do filme também acompanham a evolução do arco da protagonista, o mais evidente sendo a transição do preto e branco da sua criação para o colorido vibrante das novas descobertas. Os figurinos extravagantes e cativantes de Holly Waddington, que trazem uma leitura moderna à moda da época, e as maquiagens e penteados de Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston são ferramentas para a expressão vibrante da personalidade e estado mental dos personagens ao longo do enredo. A trilha sonora de Jerskin Fendrix não é diferente: as composições se transformam e se expandem em complexidade conforme Bella amadurece e encontra o seu lugar no mundo como mulher. Todas essas categorias também foram notadas pela Academia e concorrem à premiação.
Lanthimos definiu, em entrevista à Vogue Brasil, Pobres Criaturas como “um filme sobre o que um ser humano é capaz de fazer em um novo começo, com uma tela em branco, e o que experimenta a partir daí de uma maneira diferente do que já foi feito”. Bella Baxter é uma personagem extremamente interessante de assistir por ser completamente livre de quaisquer convenções sociais ou morais. Por questionar tudo, ela expõe ao ridículo regras fúteis da sociedade ao seu redor, como as de etiqueta, e nos faz olhar para o modus operandi em que vivemos. A mulher-criança decide o que quer a partir do que lhe dá prazer e, fazendo isso, planta a pergunta em nós: o que está nos impedindo de fazer o mesmo?
Nesse processo, a protagonista esbarra em uma de suas descobertas mais fascinantes: o orgasmo. Começa como uma curiosidade sensorial, de revelação do próprio corpo e suas sensações de prazer, como uma jovem na puberdade com a inocência de acreditar que é a primeira a descobrir isso. Eventualmente, a sua busca se estende a outros corpos e as possibilidades ao se relacionar com eles, não só restritas ao desejo, mas também à vontade de conhecer de perto as inúmeras formas de relações interpessoais.
Duncan Wedderburn, personagem de Mark Ruffalo, aparece como uma porta para o mundo afora e seus deslumbres. Bella se deixa ser guiada pelo advogado arrogante em seus primeiros passos em direção à independência, mas não permite que ele determine o caminho. O horizonte de sua curiosidade se expande para além de sensações e momentos, através de livros e pessoas que, assim como ela, questionam o que é estabelecido. O relacionamento dos dois desmorona conforme ela aprende a andar com os seus próprios pés.
É aí que, de repente, a criança é Duncan: birrento e perdido, representação de um homem que não só não está acostumado com frustrações, mas que também não consegue conceber em sua mente a noção de uma mulher que talvez queira experimentar o mundo, muito como o próprio, e não tenha interesse em se restringir às suas promessas, não importa o quão sinceras. O que Ruffalo conquista em cena é espetacular. A performance charmosa e hilária de um sedutor dramático é um dos pontos mais altos do filme, o que o levou ao reconhecimento muito merecido com a indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
Em defesa do galã desiludido, não é só Wedderburn que demonstra não saber como reagir a uma mulher como Bella. Quase todos ao redor da protagonista querem encontrar formas de controlá-la e moldá-la de acordo com suas crenças e interesses pessoais. Uma eventual exceção é o seu criador, God, que passa a abrir mão do controle sobre o seu experimento para deixá-la seguir sua própria caminhada. Com isso, ele se torna um pai ao qual ela retorna, como uma redenção de Frankenstein com o seu monstro.
O cerne de Pobres Criaturas é a quebra da ilusão, a saída da caverna para Bella. A vida é, sim, sobre doces deliciosos, viagens, dança e sexo, mas também é sobre violência, injustiça e miséria. Quando o amigo que ela conhece no cruzeiro, interpretado por Jerrod Carmichael, se revolta com a sua ingenuidade e decide a expor ao mundo real, ela experimenta a culpa. Até então ignorante a essa realidade, ela é colocada diante da parte feia do que torna o seu estilo de vida possível. Esse é um ponto crucial no seu desenvolvimento, o impulso necessário para começar a perceber as estruturas sobre as quais a sociedade se apoia e entender que conhecer a verdade pode ser doloroso, mas é o único caminho para a liberdade.