Seguindo a tendência da vez do mundo do pop, Miley Cyrus volta às décadas de 70 e 80 para construir Plastic Hearts, seu sétimo álbum que, numa direção diferente dos trabalhos nostálgicos mais bem-sucedidos de 2020, se aloca entre as muitas possibilidades do rock.
Raquel Dutra
Ela finalmente veio. Depois de muito passear entre diversos gêneros e eventualmente se perder entre tentativas de expressar sua arte, Miley Cyrus está de volta aos nossos ouvidos com um trabalho que faz jus à artista que é. Prenunciada pelo single Midnight Sky e acompanhada pelo baixo determinado da primeira faixa de Plastic Hearts, Miley não só chega exatamente do jeito que prometeu por muito tempo como também do exato jeito que ansiamos por vê-la. Isto é, experimentando expressar sua catártica rebeldia com seus vocais roucos nas vestes potentes do rock.
Os solos de guitarra e os brados enérgicos de liberdade que nascem de WTF Do I Know e de boa parte das faixas tomadas pela aura punk e glam rock do álbum, entretanto, dividem espaço com letras que versam sobre a situação delicada de alguém que mesmo celebrando sua recuperação ainda processa o que viveu. Em escolhas estéticas que lembram o último mundo de Lady Gaga, a premissa central de Plastic Hearts ressuscita a profundidade emocional de Miley, que talvez pelas muitas tentativas e erros, era quase extinta de seus últimos trabalhos.
Claro que, falando de Miley Cyrus, esse caminho não seria óbvio e traria surpresas. Sem melancolia, já no início, ela está segura em cantar “Então me diga, amor, estou errada por seguir em frente?”, sacudindo a poeira e deixando o passado e as turbulências na vida pessoal que abalaram sua carreira nos últimos anos. Em novembro de 2018, a artista perdeu boa parte de um material que havia gravado para uma série de três EPs que “contariam sua história” e formariam um novo álbum num incêndio que também consumiu sua casa e boa parte do estado da Califórnia.
Passado o trauma de 2018, no final de 2019 Miley vivenciou outro momento delicado e super midiático: o fim de seu relacionamento de dez anos com o ator Liam Hemsworth. Dessa vez, a artista que se vê nos tabloides desde criança parece ter sentido mais o baque dos caminhos nem sempre felizes da vida e do assédio da imprensa, e depois de se retrair por um tempo, afirmou ao anunciar o novo álbum que se encontrou “em meio às cinzas”.
O caos foi transposto para o álbum: os tons fortes acompanham os sons marcantes que emanam a energia obscura mas festiva, consciente, responsável (sim, ainda estamos falando de Miley Cyrus) e confiante de Plastic Hearts. Combinando o fervor do pop-rock dos anos 70 e 80 e as dores e delícias de ser quem é, Miley se distancia do narcisismo barato característico e irritante de seus últimos trabalhos. Com uma segurança que a permite assumir também suas fragilidades, a artista se expressa em formatos que fizeram parte da sua formação musical e artística.
O acerto vem porque Cyrus conhece bem os anos, os movimentos, os gêneros e os artistas que celebra e referencia no álbum. Tanto é que além dos solos das cordas, o brilho das roupas de látex e vocais rasgados, os próprios ícones da cultura punk acompanham Miley em Plastic Hearts, dando concretude ao conhecimento e à identificação que ela tem com os estilos nas músicas.
Ao lado do icônico Billy Idol (com quem já performou no passado), ela dá vida à Night Crawling. Transpirando os melhores elementos que acompanham o ídolo punk, os dois transpiram conexão numa música que você com certeza pagaria para ouvir ao vivo num festival quarenta anos atrás, gritando o refrão com do fundo dos pulmões enquanto bate o coturno no ritmo da guitarra e dos sintetizadores. O mesmo é com Bad Karma, que traz a participação de ninguém mais, ninguém menos, que a Rainha do Rock e Madrinha do Punk Joan Jett, e a banda que a acompanha desde 1980, The Blackhearts. A veterana, que também já criou bons sons junto de Cyrus, traz sua experiência do rock para o quê do country de Miley na faixa mais sensual do disco.
Mas Cyrus ainda é uma artista do século XXI. E na sua volta às décadas de 70 e 80 ela não perde a chance de incluir na viagem a dona do pop-anos-70-em-2020. Para refrescar um pouco a sonoridade do álbum, Miley canta Prisioner junto de Dua Lipa, que aproveita as façanhas da voz potente de Plastic Hearts para se soltar numa música menos emocionalmente densa (algo muito bem-vindo em meio às outras canções). A diversão da juventude rebelde cheia de ousadia pra desbravar a liberdade transforma a faixa numa versão 80’s do hino We Can’t Stop.
E falando em pop, o gênero que Miley perseguiu por um bom tempo surge timidamente em Hate Me. A faixa agrada aos saudosistas com sua sonoridade parecida com a da época de ouro de Cyrus, celebrada onze anos atrás em Party In The U.S.A. Sobre isso, abro um parênteses porque comparações como o passado da artista precisam de ressalvas: não esqueçamos que a Miley de 2020 já viveu poucas e boas e não canta versos como “Eu me pergunto o que aconteceria se eu morresse (…)/Seria muito difícil dizer adeus? (…)/Talvez nesse dia você não me odeie” à toa.
No álbum que mais aproveita seu potencial vocal e sua vastidão emocional, as baladas são de uma preciosidade ímpar, possibilidade que alguns de nós já percebíamos na sua controversa era de 2013. A dor de insistir um relacionamento com alguém que é muito diferente rasga o coração e as cordas vocais de Miley junto dos instrumentos acústicos de Angels Like You. Com pesar, ela se contenta com o ônus do autoconhecimento: “Eu sou tudo o que eles disseram que eu seria”.
Como fruto do amadurecimento, Miley nos presenteia com uma canção que é quase ela mesma em ondas sonoras. Muito provavelmente a melhor de todo o álbum, High é Miley Cyrus da cabeça aos pés. Profunda, ousada, emotiva, surpreendente e verdadeira, a faixa tem um fundo country, mais elementos acústicos e a voz cheia de sentimento da artista que se combina à um coral, trazendo um sopro fantástico do gospel. Embora as divindades fiquem para o título da canção anteriormente mencionada – na qual ela afirma ser uma frequentadora do inferno -, aqui, em meio ao sofrimento, a artista parece alcançar os céus. E leva-nos junto dela.
O sucesso das baladas se repete de forma menos majestosa na nostálgica Never Be Me, que é a trilha perfeita para nos transportar para o balcão de um bar cheio de corações partidos na década de 80, e volta com louvor no encerramento do álbum. Finalizando Plastic Hearts com chave de ouro – quase literalmente -, a melancolia dos instrumentos de Golden G String se enlaça perfeitamente com os dilemas pessoais que Miley confessa na letra, construindo quase uma conversa melódica da artista consigo mesma. Ainda nas constatações nem sempre agradáveis da autoanálise, desta vez ela concluiu ao final do refrão que “deveria ir embora”, mas acaba decidindo o contrário e informa: “acho que vou ficar”. Ainda bem.
Tamanha fidelidade que Plastic Hearts conserva pelas suas referências constrói na pele de Miley uma exímia diva do punk/pop-rock perdida em 2020. Ao não apresentar nada fora da zona de conforto dos gêneros que ela tanto admira, Cyrus constrói uma relação curiosa com suas referências, com o tempo e com a própria arte: não tem nada de presente ou futuro no trabalho da artista que por muito tempo carregou o título de ser um promessa do pop. Exceto a expectativa pelo que virá a seguir e da possibilidade promissora que ela construiu para si mesma.
Seja em um sinal de respeito aos estilos ou uma limitação criativa combinada ao desejo de finalmente acertar depois dos traumas das modas que inventou nos últimos anos, olhando sistematicamente de fora da trajetória de Miley e tendo em mente a ânsia da indústria por reinvenção – comportamento sentido especialmente por artistas mulheres – Plastic Hearts e suas criações que são exatamente a música feita cinquenta anos atrás não é nada inovador. Mas seu valor não obedece às movimentações tradicionais do mundo da música.
Equando todo o seu passado na indústria da música é contextualizado, fica fácil de entender o valor do álbum e as escolhas que Cyrus inteligentemente fez. Agora, o momento era de aproveitar a segurança que caminhos já conhecidos permitem para assumir com segurança suas emoções mais profundas. De quebra, Miley conseguiu reconstituir com uma fidelidade surpreendente movimentos musicais com os quais sequer teve contato pessoalmente, mas que se encaixam muito bem na sua personalidade e com os quais ensaia se atrelar há muito tempo. Assim, Plastic Hearts é o ‘finalmente!’ de Miley, que fez o que fez com uma maestria que marca o álbum como um dos grandes acertos de sua carreira, que alcançando boas avaliações da crítica especializada – que dificilmente simpatiza com Cyrus – pode ser visto até mesmo como seu melhor trabalho até agora.
Essa essência complexa da Miley Cyrus que fez Plastic Hearts é o que dá sustância ao disco e também cria o aspecto que o destaca dentre toda a sua diversa discografia. Aqui, ela não se contenta com estereótipos rasos nem restringe sua vastidão emocional à personagens pré-definidos. Longe da rebelde sem causa que conquistou corações e afastou muitos outros de Bangerz e da country jovial demais que não condizia com a artista experiente que criou Younger Now, em Plastic Hearts, pela primeira vez, sentimos Miley segura de si mesma em toda a sua complexidade, que ironicamente – e obviamente – também inclui assumir algumas inseguranças e reconhecer suas próprias limitações.
O que solidifica tudo isso é a ausência de medo em bancar tudo o que se é, e depois de tanto erros e acertos, agora Cyrus parece ter compreendido a si mesma. “Corações de plástico estão sangrando” ela alerta rapidamente na música que nomeia o álbum. Que sangrem, respondemos, ansiosos pelas próximas criações de Miley. Sentimento bruto é o ponto de partida mais certeiro para fazer arte, e espremer seu coração até a última gota para cantar seus sentimentos e assim regenerar-se enquanto curte o caminho com muito estilo, ela mostrou que sabe fazer.