Aviso: o texto contém spoilers.
Davi Marcelgo
Em Planeta dos Macacos: A Guerra (2017), Caesar (Andy Serkis) foi inserido numa narrativa inspirada na trajetória de Moisés e a terra prometida; levar seu povo a um lar sem violência. O novo Planeta dos Macacos: O Reinado (2024), persiste na dinâmica religiosa, mas não ficando somente no terreno da referência e, sim, tornando-a temática. Décadas após a morte de Caesar, o jovem Noa (Owen Teague) é a única esperança de salvar sua aldeia da tirania do rei Proximus (Kevin Durand).
O crítico Arthur Tuoto, em seu comentário sobre A Guerra (2017), dirigido por Matt Reeves, ressalta a dificuldade do filme equilibrar entretenimento com autoria. Tal problema não está, de forma alguma, em O Reinado, dirigido por Wes Ball, que consegue ser um blockbuster com ações pitorescas ao mesmo tempo que te convida a desbravar esse mundo (velho) novo, com uma pegada mais autoral. Por isso, assistir a distopia da Gripe Símia é ter a mesma sensação de testemunhar o mergulho intenso nos oceanos em Avatar: O Caminho da Água (2022).
Entre as duas horas e 25 minutos do longa, Ball passeia por muitos cenários e dedica várias sequências para o público conhecer não somente o relacionamento das personagens, como também a cultura. A primeira cena de Noa e seus amigos é uma empreitada por uma tradição da aldeia, chamada de “vínculo”, ritual em que os jovens ganham suas águias. Vínculo é o que vamos criar com o filme: são muitos os detalhes referente aos hábitos dos macacos, desde canções, fé, vestimentas e até a organização hierárquica da sociedade.
Wes Ball rejeita os atuais filmes de ação hollywoodianos que precisam a todo momento ganhar a atenção do público com explosões e ritmo frenético. Para o autor, emular um road movie com pinceladas de western é mais encantador. A saída do jovem Noa da tribo, muda a sua perspectiva do cotidiano, fé, história da sua espécie e a forma como ele enxerga os humanos. O desenvolvimento do personagem é carregado de sutileza, ele vai cozinhando todos os conhecimentos adquiridos em sua cruzada para usá-los no final – não no clássico molde da jornada do herói, mas em sua postura nas relações com humanos e macacos.
Os desdobramentos sucedem a partir de diálogos entre Raka (Peter Macon) e Noa, arquétipos de mestre e aprendiz, respectivamente, seja em volta de fogueiras ou andando à cavalo. O cineasta cria uma atmosfera serena ao unir seus enquadramentos com a trilha sonora de John Paesano, que evoca com violinos o sentimento de isolamento que uma distopia provoca, fazendo do ‘arrasa-quarteirões’ um filme preocupado com uma estilização correspondente ao cenário em que se desenrola. Apesar dos momentos silenciosos e introspectivos, ainda é um ‘filmaço’ de verão norte-americano.
Quando é para ser um grande filme de ação, o diretor de Maze Runner usa os corpos dos macacos a sua disposição. Os golpes de gorilas são fortes quando comparados aos primatas menores; a coreografia traz a sensação de perigo – um macaco te atacando pelas costas é, no mínimo, assustador –, os pulos e escaladas são filmadas com tensão e movimento. Assim como as cenas de perseguição te grudam na poltrona do cinema.
O filme sobre macacos celebra a humanidade e o que ela tem de bom, abordando o amor, a fé e cultura com registros de livros, canções, alfabetização, brinquedos de crianças, encontros românticos para ver as estrelas, amizade e irmandade. São muitos os elementos de Planeta dos Macacos que nos faz refletir sobre nossa humanidade. Abrindo o longa com um enterro, ver animais tendo a compreensão da morte e fazendo um evento para chorar a perda é, de fato, humano.
Como também na ganância, a impotência de conviver com a diferença são representados por Proximus e Nova (Freya Allan). O enredo fisga o espectador por usar as características e invenções humanas que já são conhecidas – afinal, vivemos nesses corpos e nesse mundo –, e por dar novos significados a partir de uma abordagem fictícia de uma ótica ingênua; personagens antropomórficos que não viveram aquela época e precisam dar sentidos a partir de seus referenciais.
O trio de roteiristas, Josh Friedman, Amanda Silver e Rick Jaffa (Silver e Jaffa participaram de Avatar: O Caminho da Água), escreve o enredo em uma estrutura bem ‘redondinha’. É fácil identificar quando começa um ato e termina outro, sempre antecedidos por morte e revelação. Essa fórmula dá dinamismo para trama e ‘dá gás’ para o público ir para a próxima metade com a energia lá em cima. O grupo também sabe guardar os pequenos momentos de clímax, incitando um acontecimento, mas só de fato acontecendo no momento ideal. Os twists da história aparecem no instante máximo de cada ato e fazem com que o espectador fique ansioso para saber para onde ela vai. E se ele pensa que acertou, está enganado: Friedman, Silver e Jaffa vão te pegar de surpresa.
De macaco sádico a empresário engravatado, nenhum vilão da franquia desde Planeta dos Macacos: A Origem (2011) é marcante, por exceção do imperador Proximus, que é um antagonista interessantíssimo. Fissurado pelo Império Romano, o primata invade aldeias, escraviza a população e se apropria da cultura humana e de macacos. Se autodeclarando como o próximo Caesar – daí seu nome Proximus –, o visual usando coroa e a ótima interpretação de Kevin Durand trazem muito charme ao personagem. O que poderia ser um vilão genérico, na verdade, é conceitualmente interessante e ameaçador pela ambiguidade dos traços de personalidade. Proximus fala calmo, abraça os protagonistas, mas consegue manipular os personagens à sua volta e o público, quando tenta descobrir ‘qual é a dele’.
A história brinca com o conceito de falso messias, lendas e pós-verdade. Antes, se o símio, interpretado pelo mestre da captura de movimento, podia ser comparado com Moisés, agora remete a Jesus Cristo. Afinal, Caesar se tornou um mito e ganhou seguidores de seus ensinamentos; os lemas “Macaco não mata macaco” e “Macacos unidos, macacos fortes” tornaram-se mantras. Porém, na garganta de Proximus, o discurso é subvertido e o que era um lema de irmandade e revolução é transformado em promoção de trabalho neo-liberal. São contadas histórias sobre o primeiro macaco inteligente e seus feitos, algumas, partem de fatos verídicos, mas outras, são puro exagero de uma lenda passada por gerações. O efeito é falar diretamente com o espectador; os fãs da saga conhecem o que realmente aconteceu.
Qual espécie é herdeira da Terra? Essa é a dúvida que percorre os debates do longa, enquanto os macacos estão seguindo com suas vidas e formando suas próprias sociedades e costumes, alguns grupos de humanos não desistiram de tomar o controle do planeta e de subjugar outras espécies. Proximus aprende sobre isso com Trevathan (William H. Macy), seu professor de história da humanidade. Foi através desse estudo que ele se inspirou em uma das maiores civilizações do ocidente, e se isso já é conceitualmente excitante, a forma como a coroa cai é soberana; a aldeia de Noa canta a música do vínculo com as águias que, atraídas pela canção, trucidam Proximus.
Assim, um escravocrata que se apropria de culturas humanas e de primatas para fins nefastos é tombado pela gnose da aldeia oprimida. O vilão não é derrotado porque há uma posição de hierarquia e um líder que pode bater de frente com ele, mas pela união de um povo que se reconhece. A cena vai de encontro com os ensinamentos de Caesar, mencionados várias vezes, inclusive por Proximus. A sequência, épica por si só, é combinada com o texto, desaguando em uma catarse deliciosa.
Planeta dos Macacos: O Reinado é um dos melhores filmes de 2024. Bonito e empolgante, o longa não perde energia em momento algum e usa os elementos da saga para criar sua própria assinatura. Partindo da religião como o coração temático e de reflexões sobre o que é ser humano, o filme expande a lore com inteligência do roteiro ao enredo, pendura o espectador em cipós e o faz torcer (mais uma vez) pela prosperidade dos macacos.