Enrico Souto
Vivemos em um país em que os ecos da homofobia, institucionalizada e articulada pelas principais ferramentas de poder, podem afetar até mesmo a relação de uma mãe e um filho na periferia da Baixada Santista. Um discurso que está socialmente arraigado de tal forma, que é capaz de levantar entre eles uma barreira quase intransigível, em nome de uma luta que opera contra seus próprios interesses. Pedágio, filme nacional que chegou aos cinemas em Novembro, assume todas as facetas desse fenômeno, através de uma trama que não poderia irromper de outra forma, que não em um humor tragicamente mordaz.
A diretora Carolina Markowicz já ostenta uma trajetória excepcional e uma carreira tão promissora quanto consolidada. Antes de peregrinar pelo universo de longas-metragens, ela dirigiu seis curtas que percorreram o mundo, entre 2007 e 2019, recebendo exibições em eventos como TIFF (Festival Internacional de Cinema de Toronto), SXSW (South by Southwest) e o Festival de Locarno. Sua maior premiação veio em 2018, quando conquistou o Queer Palm – prêmio do Festival de Cannes destinado ao audiovisual LGBTQIA+ – pelo curta-metragem O Órfão.
Lançando seu segundo longa-metragem, Markowicz aposta em mais uma narrativa queer, porém a partir de lentes antagônicas. Desta vez, acompanhamos Suellen (Maeve Jinkings), uma humilde cobradora de pedágio em Cubatão, São Paulo, que precisa conciliar suas longas jornadas de trabalho com os cuidados de seu filho adolescente, Tiquinho (Kauan Alvarenga). Contudo, prestes a completar 18 anos, o garoto apresenta cada vez mais comportamentos afeminados, desafiando a mentalidade ignorante da mãe, que decide ir até as últimas consequências para financiar sua ida a um exorbitante curso de um pastor gringo, com a ostensiva promessa de ‘cura gay’.
Com uma premissa centralizada em uma retórica tão abjeta, este drama familiar encontra porto-seguro na humanidade que transborda de seus atores. Não é à toa que a obra foi a mais premiada do Festival do Rio em 2023, levando três das quatro categorias de interpretação. Maeve Jinkings – que já havia trabalhado com a diretora em Carvão (2022) – dá vida a uma Suellen melindrosa, que apesar do incontestável amor que sente pelo filho, não consegue se desvencilhar de seus preconceitos. Por outro lado, a sensibilidade de Kauan Alvarenga – protagonista do curta O Órfão – faz com que o público sinta cada uma das frustrações de um garoto que, independentemente das tentativas, nunca será o suficiente para sua mãe. Uma premissa difícil, sim, mas inevitavelmente ordinária e profundamente identificável.
A direção de arte de Vicente Saldanha, também reconhecida pelo Festival do Rio, cria imagens belíssimas a partir de uma visão corriqueira no Cinema nacional independente, com composições secas em um tom melancólico, elevado por longos silêncios e cortes bruscos entre cenas. A fotografia de Luis Armando Arteaga brinca com imagens naturalistas, peliculares e uma gradação acinzentada, que passeia esporadicamente por cores vibrantes. O destaque, todavia, está em uma narrativa que demonstra como essa estética, aparentemente sóbria e realista, não passa de um cenário absolutamente patético.
Markowicz, que também assina o roteiro, foge da batida história queer calcada em violências para, em uma absoluta quebra de expectativas, entregar uma verdadeira sátira. A linguagem de Pedágio é cínica, amarga, espelhando a pós-ironia de uma geração que, ao se ver enfiada nos cenários mais apocalipticamente absurdos, não consegue parar de rir. Uma diegese que certamente bebe do afrossurrealismo, ao usar da própria realidade para expor o discurso homofóbico-religioso ao completo ridículo. É impossível assistir à cena de um grupo de jovens em roda moldando órgãos genitais com massinha colorida, por ordem de um pastor hippie de sotaque excessivamente português, e não se ver instantaneamente dentro de um episódio de Atlanta.
Entretanto, é a partir dessas caricaturas múltiplas que Pedágio dá vazão para que as nuances de seus dois protagonistas se manifestem. Como a própria Jinkings define, Suellen é um reflexo do brasileiro médio. Uma mulher que se agarra a uma religiosidade menos por convicções pessoais, e mais pela falta de contato com qualquer outra perspectiva. Uma mãe solo que, ao ver seu filho trilhar um caminho tão distinto do seu, acredita que errou. E, em busca da resolução de um problema estruturalmente fabricado, trilha um caminho de escuridão, até que se veja obrigada a pagar um preço que sequer lhe pertencia.
Em contrapartida, a esperança em meio a este contexto catastrófico se expressa em Tiquinho. Em paralelo e oposição a sua mãe, acompanhamos o amadurecimento do garoto que, mesmo com todas as probabilidades contra si, faz com que rosas floresçam do asfalto. Porém, mesmo assim, o longa rejeita a utopia. No seu momento de maior catarse, o personagem é arrebatado de volta à realidade, no mais ácido retrato de sua condição. Essa é a única alternativa honesta que Markowicz encontra para tratar de uma perversidade que vitima pessoas LGBTQIA+ até hoje. A superação é um processo e nossa disputa está longe de acabar.