Enrico Souto
Causeway, longa da A24 indicada ao Oscar de 2023, traduz-se como ‘ponte’ para o português. Essa ponte, tanto em significado material quanto metafórico, representa uma contradição que assombra perpetuamente seus personagens: símbolo do elo entre pessoas, fonte de experiências ternas carregadas por toda a vida, ao passo que subordinado ao inevitável erro, catalisador de traumas inomináveis e fardos que, da mesma forma, serão lembrados para sempre. Ao mergulhar sob a relação desengonçada de dois indivíduos que, embora quebrados, acham conforto na companhia um do outro, Passagem, como foi nomeado no Brasil, imerge no micro para resgatar a raíz e o valor inerente ao afeto humano.
Apesar de sua estreia elogiosa no Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2022, foi na Apple TV+ em que o filme recebeu todos os holofotes ao grande público. A plataforma, que estreou no Oscar com seis indicações em 2022 e fez história ao se tornar o primeiro streaming a vencer o prêmio de Melhor Filme, teve uma aparição modesta nesta edição, sendo citada em somente duas ocasiões. Entre elas, Causeway, o único longa-metragem do serviço da Apple a competir neste ano, foi lembrado pela interpretação de Brian Tyree Henry na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, marcando sua primeira indicação ao Oscar.
Ainda que entre na corrida como azarão, competindo com representantes dos maiores favoritos deste ano, como Brendan Gleeson (Os Banshees de Inisherin) e Judd Hirsch (Os Fabelmans), além do principal cotado para a vitória, Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo), a aparição do ator é uma excelente surpresa para uma das interpretações mais delicadas do ano. Dando apoio à protagonista de Jennifer Lawrence, que retorna às telas depois de seu papel em Não Olhe Para Cima, Brian dá base e corpo a uma narrativa única que, em um ano marcado por pirotecnias, se ancora no silêncio.
Aqui, seguiremos Lynsey (Jennifer Lawrence), uma militar que servia os Estados Unidos no Afeganistão, até sofrer uma lesão cerebral ao ser atingida por uma explosão em campo, obrigando-a a se afastar do exército. Entretanto, não se engane. Este não é um filme sobre veteranos de guerra ou transtorno de estresse pós-traumático. Apesar de elementos ligeiramente presentes, Lila Neugebauer, que estreia na direção de longas-metragens, realiza esforço ativo para se distinguir da típica estetização da guerra de produções do gênero, em benefício de uma perspectiva visceralmente pessoal.
E a prova cabal disso é como Lynsey mal pode esperar para voltar aos trabalhos. Isso porque, na realidade, os traumas acumulados no cenário de guerra do Oriente Médio não se comparam com as feridas que ela carrega de Nova Orleans, sua cidade natal. Inclusive, a jovem somente se alistou em primeiro lugar para se afastar de sua família, conhecidos ou qualquer coisa que remetesse àquele local. Sabendo que inevitavelmente topará com seu passado, ela estende o quanto pode sua estadia com Sharon (Jayne Houdyshell), até que não possa mais pagar por seus cuidados.
Como a lesão afetou grande parte de suas capacidades físicas, acompanhamos pacientemente a protagonista reaprendendo as tarefas mais simples: andar, comer, escovar os dentes ou mesmo segurar um copo se tornam um desafio. A fotografia nua de Diego García registra os mínimos detalhes através de planos estáticos e amplos, replicando visualmente a constante apatia que a permeiam. Esse momento espelha toda a trajetória emocional de Lynsey que, depois de tanto tempo se privando de qualquer conexão íntima, terá que descobrir como se relacionar com o outro, do zero.
Ao enfim chegarmos a Nova Orleans, entendemos o quão justificável é a apreensão de Lynsey. Crescendo em um lar disfuncional, sua mãe, Gloria (Linda Emond) é negligente e inerte aos desejos da filha, que por consequência se faz distante e não mantém interações além do funcional. Gloria percebe isso, porém, ainda que tente estar presente, nunca consegue deixar o próprio ego para trás. Até ali, seu irmão aparece somente em fotografias antigas, como se não passasse de uma memória dolorida, um fantasma, tanto quanto a própria personagem de Lawrence enquanto vaga sem vida pelos corredores da modesta casa em que cresceu.
Nesse espaço, uma nova figura surge na vida de Lynsey por meio do evento mais banal. Após levar sua caminhonete danificada para a primeira oficina que aparecesse, ela cruza seu caminho com James (Brian Tyree Henry), um dos mecânicos do local. A partir disso, observamos essa relação desenvolver-se de uma conversa trivial sobre um carburador quebrado, para uma carona despretensiosa devido ao sol da tarde, para um vínculo que evoca os sentimentos mais primordiais. Vínculo esse que tinha tudo para nunca evoluir daquela interação inicial, mas que, na necessidade mútua de existir além de suas prisões particulares, ambos agarram a oportunidade de, pelo menos por um instante, não estarem mais sozinhos.
Muito foi dito sobre Passagem como um filme sustentado por seus dois atores principais. Contudo, diferente do que poderia-se prever, não há disputa entre eles. Ao invés de apostar em interpretações mais expansivas, diálogos explosivos e expositivos, Tyree Henry e Lawrence ocupam a tela a partir das maiores frivolidades. Eles incorporam James e Lynsey com tamanha naturalidade, que mostram-se capazes de manifestar todas emoções do universo nas expressões mais sutis. Uma abordagem árdua, porém honesta e, sem dúvidas, mais humana.
Porém, ainda que Jennifer Lawrence tenha entregado uma das interpretações mais belas de sua carreira, Causeway é o filme de Brian Tyree Henry. Lila Neugebauer, que é amiga pessoal do ator, abre passagem para que ele possa desmantelar sua barreira entre o público, concatenando-nos a James através da mais pura empatia. Enquanto profissional negro, que sempre abordou seus personagens com uma sensibilidade além do perceptível, Henry encontra espaço para expurgar suas defesas e se vulnerabilizar ao limite. “Cheguei a um ponto em que as pessoas vêem a performance, mas chegam cada vez mais perto de ver a mim mesmo. O que é bizarro, mas também sinto que é necessário”, comenta, em entrevista à Variety.
É esse processo de permitir-se frágil que norteia Passagem. Lynsey encontra em James – e vice-versa – a lacuna que procurava para preencher seu vazio interior. Se ele guarda um remorso imenso por sentir-se responsável pela morte de seu sobrinho, uma mágoa carregada no corpo e que o faz criar um apego e necessidade de proteção imediata à ex-militar; ela nunca se sentiu digna de amor ou estimada por aqueles ao seu redor e, ao ver-se valorizada depois de tanto tempo, passa a cultivar uma carência profunda ao amigo. Todavia, apesar de desejar essa conexão, a protagonista se recusa a abrir mão da própria casca, seja por medo de não ser aceita, ou para que não seja obrigada a encarar suas feridas.
Assim que o elo entre os dois toma dimensões carnais, ao ponto de que seus traumas não possam ser ignorados, Neugebauer ratifica que a força de seu estudo de personagem está na atenção ao detalhe. Pois não será em um dramático monólogo, ou em uma virada de segundo ato acachapante, que o arco de Lynsey se completará. Será na grandeza das pequenas coisas que Causeway conduzirá sua mensagem mais potente. É no olhar silencioso entre duas pessoas sedentas por redenção – preenchendo as brechas deixadas pela trilha sonora pontual, mas poderosa de Alex Somers –, que presenciaremos o instante em que, mesmo após ser aprovada para retornar à campo, a protagonista decide enfrentar os demônios de sua terra natal e, enfim, abrir passagem para a cura.