Ana Júlia Trevisan
A Televisão é, ainda hoje, um dos meios de comunicação mais eficientes já criado pelo homem. No Brasil, disputando com novelas e programas jornalísticos, muitos canais cedem espaço para que pastores vendam a cura e tirem os demônios de seus devotos via satélite. Entretanto, o pioneirismo vem dos Estados Unidos com Jim Bakker (Andrew Garfield) e outros tantos religiosos como Jerry Falwell e Pat Robertson, homens, brancos, ricos que usam da boa oratória para transformar o Cristianismo em showbiz, lucrando à custa da fé dos espectadores. A narrativa é familiar, mas Os Olhos de Tammy Faye enxerga a figura singular da televangelista que batiza o filme de maneira humanizada, dando um passo além da extorsão.
Adaptado do documentário homônimo de 2000, que foi comandado por Fenton Bailey e Randy Barbato, Os Olhos de Tammy Faye tem a missão divina de levar ao Cinema a ordinária história da televangelista autonomeada. A ideia de redescobrir a biografia nasce guiada pela voz de RuPaul, narrador da produção original, e do encantamento de Jessica Chastain pela crônica que estava sendo contada.
Em 2012, a atriz se imaginou vivendo a personagem e comprou os direitos do doc, optando por uma reprodução ficcional. Nessa quase uma década desde que separa a decisão e a estreia do filme, a direção ficou nas mãos de Michael Showalter. Enquanto o roteiro ficou a cargo de Abe Sylvia, que cresceu durante o clímax da história do casal Faye-Bakker, e usa seu conhecimento e fascínio para delinear os bastidores dos escândalos.
Ao mesmo tempo em que o documentário de 2000 ajuda a reconstruir a sórdida imagem de Tammy Faye e resgata sua biografia do fogo eterno, o longa de Michael Showalter (Love) caminha desde a faculdade bíblica em Minneapolis, onde Tammy conheceu e se apaixonou pelo showman Jim Bakker, até a consagração do casal no ministério televisivo nos anos 70 e 80.
The Eyes of Tammy Faye foca em apresentar um lado mais ingênuo da missionária, construindo seu relacionamento com Bakker e deixando claro desde o primeiro ato as percepções da direção sobre os protagonistas: Tammy, mulher fervorosa, conhecedora dos sacramentos bíblicos e ingênua. Já a montagem de Jim liga o sinal de alerta de que o bom samaritano futuramente se desviará da moral e dos bons costumes cristãos. O filme pinta uma imagem redentora que deixa para o público decidir até que ponto a cônjuge sabia sobre as atividades fraudulentas de seu marido.
A potência televisiva de Jim Bakker e Tammy Faye se deve a emissora que eles criaram: a PTL. Aqui o filme exerce seu papel de apresentar o que acontecia por trás das câmeras nas negociações de criação de um dos maiores canais televangelicos dos EUA, cujo programa principal era comandado por seus fundadores. Para além do sagrado, Os Olhos de Tammy Faye serve para exibir as profanidades que aconteciam nos bastidores da PTL.
O patrimônio milionário foi construído somente com doações dos fiéis, que eram explorados financeiramente até em cenários pecaminosos. Não havia história cabeluda o suficiente que Jim Bakker e os ‘grandões’ do televangelismo não transformassem em notas de dólar. A direito, a produção mostra que eles esbanjaram todo esse dinheiro. Tammy era uma mulher extravagante que ostentava joias, acessórios e roupas caras, maquiagens pesadas e morava com Jim em uma mansão. Ele, por sua vez, apesar de ser mais discreto, desmantelou o império com denúncias de corrupção e escândalos sexuais.
A maquiagem pesada, principalmente em seus olhos, tornou-se marca de Tammy. Os cílios quilométricos, as sobrancelhas com traços acentuados e as pálpebras marcadas; o sorriso corajoso mas tomado por uma angústia psíquica ao lado de seu marido. Esse é o erguimento mais marcante da imagem de Faye e transmitido com louvor pelo afinado trabalho da equipe de maquiagem integrada por Linda Dowds, Stephanie Ingram e Justin Raleigh. Com seu apogeu nas décadas de 60 e 70, a cinebiografia se esforçar para apanhar fragmentos que interligam os trinta anos de matrimônio e o trabalho que concorre ao Oscar de Melhor Cabelo e Maquiagem lida de forma convincente com a passagem cronológica de décadas, vendendo a imagem pastoral de Deus, Pátria e Família.
Andrew Garfield, conhecidíssimo dessa temporada de premiações, envelhece seguindo um compasso natural divino com a sutileza dos cabelos embranquecendo. Por outro lado, a mudança em Tammy se reflete de maneira espalhafatosa, cada violação – própria ou alheia – dos mandamentos bíblicos grita em cabelos mais volumosos ou maquiagens carregadas e de traços permanentes que cumprem o papel de causar leve desconforto pela personagem que briga por afeição. A caracterização é feita para incomodar, mesmo que de certo ângulo o maxilar quadrado pareça caxumba é o exagero que dá a dimensão dos pecados do casal Bakker.
A maquiagem pesada ainda serve de catalisador para que Jessica Chastain entregue a atuação mais importante de sua carreira. Concorrendo a categoria de Melhor Atriz no Oscar, prêmio que já venceu pelo mesmo papel no SAG e Critics’ Choice Awards 2022, Chastain esbanja carisma e mostra o domínio pelo roteiro que tem em mãos, exercendo deslumbramento e incômodo na mesma moeda. A tentativa do filme de humanizar Tammy Faye do ridículo se completa através da alma que Chastain imprime por baixo de todo pó compacto, revelando o credo em Deus e na magia dos fantoches que a mulher de voz de Betty Boop carregava. Os olhos de Tammy Faye voltam a brilhar através das íris de Jessica Chastain, que com o olhar perdido livra Faye do caricato e denota uma mulher que merece simpatia e não ostracismo.
Poupando os pecados do roteiro, The Eyes of Tammy Faye se edifica por sua impecável estética. O design dos anos 70 e 80 extravasa pelas telas de forma nostálgica, destacando a alta costura e a luz amarela. Do ambiente iluminado por luz natural quando Tammy luta por um espaço na mesa dos cristãos ímpios onde o pastor conservador Jerry Falwell (Vincent D’Onofrio) detém o voto de minerva, até a ascensão de Jim com The 700 Club moldada em uma atmosfera que mais se aproxima do mundano do que o sagrado, Os Olhos de Tammy Faye está longe de fazer milagre, mas pode se apoiar na louvável direção de fotografia de Mike Gioulakis. Em proveito das aparências, nada passa imune a soberba de Bakker que apela para confissões chorosas na TV sobre como – após os escândalos sexuais – o casal de bem é perseguido e, acompanhado pelos vocais da esposa, clama aos paroquianos aumento em suas doações.
O que definitivamente falta no filme é enfatizar a importância da evangelista para a comunidade LGBTQIA+. Os Olhos de Tammy Faye dá a ciência de seu apoio à causa, mas a cena da missionária entrevistando um homem portador do vírus da AIDS, no auge da epidemia, só não se perde pelo forte peso emocional que carrega em mostrar uma serva do Senhor defendendo a comunidade. A conversa com Steven Pieters (Randall P. Havens) parece mais comovente por causa de quão direto ela acontece no longa, no entanto, a apresentação não convence que a mulher seguidora dos dogmas religiosos realmente apoia a causa enquanto a Igreja prega a morte de homossexuais. O ambiente, até hoje!, hostil da instituição, se vincula às outras prioridades do roteiro que acaba por rebaixar à uma nota de rodapé o ato raro e parte notável do legado da mulher que abraçou ativamente a comunidade gay.
Nas entrelinhas Abe Sylvia (Disque Amiga para Matar e Nurse Jackie) diligencia a culpa cristã. Em momento algum a vilania é colocada no alicerce da Igreja ou nos ombros do Espírito Santo, o roteiro denuncia o showbiz dos homens brancos, ricos, poderosos e miseráveis. As cenas de Jim Bakker são revestidas pela ganância. Além disso, o mérito não é escondido, a pessoa que serviu de muletas para que o pastor desse o primeiro passo junto aos podres para conseguir investidores e assim construir seu império tem nome e sobrenome: Tammy Faye.
Os Olhos de Tammy Faye definitivamente não é um filme sobre religião, mesmo com a fé de uma mulher e o televangelismo sendo suas maiores bases de apoio da narrativa. O que acontece aqui é a deliberação de um caso em específico, sem partir para uma generalização que não se sustentaria e ainda correria o risco de colocar a produção em praça pública sob as tochas e os gritos de heresia.
Ao fim, resta o purgatório. A decisão de deixar nas mãos do público o termômetro de culpabilidade de Faye ludibria toda narrativa criada a seu favor – mesmo sua traição faz com que asco caia sobre Jim, provando o favoritismo da produção, contribuindo para que ela ficasse de fora das premiações nas categorias de roteiro. No juízo final, o veredito é que Os Olhos de Tammy Faye convence que a protagonista pode até não merecer retenção plena, mas merece ter sua história contada de maneira harmoniosa e com o cuidado para retratar toda a complexidade humana por trás dos extravagantes cílios. Seu ex-marido – e os televangelistas que veem a fé como exclusiva fonte de lucro – tem direito apenas ao pão que o diabo amassou, aliás, as gravações do filme terminaram em 2019, e um ano depois, Jim Bakker tentou vender prata coloidal às pessoas como uma cura para a covid-19. E por último Jessica Chastain aguentou o peso da cruz e cumpriu sua missão com louvor, tem passagem direta aos céus – ou quem sabe ao palco do Oscar, mesmo que ela pule o tapete vermelho.