Caroline Campos
“Desde que consigo me lembrar, eu sempre quis ser um gângster. Para mim, ser um gângster era melhor do que ser Presidente dos Estados Unidos”. É com essa frase que Martin Scorsese, um dos diretores mais incansáveis em atividade, decide nos apresentar a Henry Hill, seu protagonista de quiçá o maior filme sobre máfia já produzido: Os Bons Companheiros. Baseado em verdadeiros mafiosos, a obra, que completa 30 anos em 2020, integra a vasta e variada filmografia do diretor nova-iorquino, que abrange desde filmes sobre boxe até documentários de grandes estrelas do rock.
Lançado em 1990, acompanhamos a ascensão e queda de Hill, interpretado por Ray Liotta. Henry começa sua carreira na máfia desde cedo, deixando claro que nunca quis ser um sujeito comum, com limitações comuns e, acima de tudo, um salário comum. Meio italiano e meio irlandês, nós conhecemos toda a história através da sua própria narração em off, desde que começa a trabalhar para Paul Cicero, o mafioso que Paul Sorvino dá vida brilhantemente, até quando vira o pupilo e melhor amigo de Jimmy Conway, um De Niro decidido, com total domínio de seu gângster com status de lenda.
A narrativa nostálgica passa a ser compartilhada assim que o charmoso Henry conhece sua futura esposa, Karen. Lorraine Bracco recebeu uma indicação ao Oscar pelo seu papel de mulher traída e explosiva, mas Karen Hill impera em cada cena que participa, mostrando que sua personagem estava lá para ficar, nunca se assustando ou fugindo dos momentos de conflito que a vida do marido a colocava. Nada mais icônico pode representar o poder do casal do que o plano-sequência de mais de 180 segundos que os acompanha entrando pelos fundos de um restaurante com uma imensa fila de espera. Como um terceiro membro de um ménage à trois, a câmera os segue posicionada sempre atrás, até o momento que são recepcionados e uma mesa é colocada de frente ao palco só para eles. O american dream da máfia scorsesiana.
Entretanto, já diz o ditado: quanto mais alto o voo, maior a queda. Henry vive uma vida de excessos, sempre ao lado de seus parceiros Jimmy e Tommy DeVito (Joe Pesci). Envolvidos com tráfico de drogas, assaltos grandiosos e inúmeros assassinatos, uma hora as coisas desandam. E, com certeza, desandaram. Com uma mudança brusca, Henry, antes sempre arrumado e impecável, passa a ser retratado cada vez mais fora de si, com cabelos avoados e olhos esbugalhados. Scorsese sabe bem aonde quer levar seu personagem, e não mede esforços visuais para demonstrar a destruição e a violência que o destino trouxe a seus protagonistas.
O elenco escolhido por Marty, como é chamado por seus amigos, é um frenesi cinematográfico. Robert De Niro já é figurinha carimbada em seus filmes – foram 9 longas juntos, o mais recente sendo O Irlandês. Seu Jimmy Conway, o cavalheiro, possui um carisma excepcional, que caminha lado a lado com sua instável paciência. De Niro é o perigo espreitando abaixo da pele, só esperando para surgir. Sua fúria, ao final, se volta contra seu protegido. Depois de ser pego no esquema de tráfico de cocaína, Henry, Liotta em seu auge, dedura seus bons companheiros. Todos vão para cadeia, e Hill se refugia no Programa de Proteção à Testemunha. A “família” finalmente se desmantela.
Entre o trio, Joe Pesci não é nada menos que selvagem. Seu Tommy DeVito é um tanque de guerra, problemático e orgulhoso, cheio de ataques de fúria e assassinatos surpresa. Pesci reconhece a instabilidade do seu personagem e brinca com ela o filme todo. “Engraçado?”, confronta Tommy, após contar uma história claramente cômica, “engraçado como? Você acha que sou um palhaço para te divertir?” Esse é o momento que todos param, a brincadeira acaba e as feições ficam sérias. Momentos depois, a explosão de risos. “Eu quase o peguei”, gargalha DeVito. Bem, nós fomos absolutamente pegos. A tensão da cena – fruto de uma improvisação – é tão palpável quanto qualquer objeto físico presente. Não é à toa que o papel o rendeu um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
O roteiro, assinado não só por Scorsese, também conta com Nicholas Pileggi, autor do livro Wiseguy, em que o filme foi baseado. Seus diálogos já nasceram clássicos. A todo momento, Henry justifica o porquê escolheu aquela vida, fazendo com que nós, pobres mortais seguidores da lei, oscilamos entre inveja e indignação. Gorjetas recheadas, rodadas de bebidas, restaurantes chiques – como não desejar tudo aquilo? Não demora muito para que a resposta chegue. A violência é uma constante, gráfica e cruel, a cada cena. DeVito esfaqueando um homem já preso em um porta-malas, Hill dando coronhadas em um vizinho de Karen, Conway sufocando um parceiro com um fio de telefone. A todo momento, Martin, que cresceu em Little Italy, bairro nova-iorquino repleto de mafiosos, nos alerta e nos instiga com seu imaginário que um dia já foi garoto.
Toda a concepção estética e musical do filme ajudam na criação do ambiente hostil e brutal do universo mafioso. Ao som de Cream e Derek & The Dominos, os tons de vermelho-perigo das mesas de encontros e das desovas de corpos ficam mais intensos, como uma ironia entre vida e morte. As escolhas de Scorsese são calculadas, algumas até proféticas, na intenção de deixar seus gangstêres o mais realista possível, fugindo de qualquer romantização. A medida que a paranóia de Henry vai crescendo, a câmera se descontrola, como que guiada por seu mestre onisciente.
O longa foi indicado em 6 categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme. Mas como nem tudo são louros, Scorsese e sua obra foram esnobados, já que só Pesci conseguiu a estatueta. A relação de Martin com a Academia foi no mínimo tumultuada, pois apenas em 2007 o diretor foi agraciado com a melhor direção por Os Infiltrados – mesmo com um currículo que abrange Taxi Driver (1976) e Touro Indomável (1980). Injustiças a parte, o dono das sobrancelhas mais famosas de Hollywood nunca precisou do homem dourado para fazer jus a sua carreira.
Desde que Henry olhou nos olhos de Paulie Cicero – uma espécie de “padrinho” à la Don Vito Corleone – e mentiu, soubemos que seu caminho estava traçado. Não podia ser um “homem feito”, como chamam quem entra na Máfia, e se rendeu ao tráfico de drogas pela boa grana que fazia. Os personagens, antes charmosos e no controle, passam a se perder e atacar uns aos outros, resultando em mortes marcantes e numa ótima cena de Robert De Niro destroçando uma cabine telefônica. Por fim, Henry se agarra a única coisa que ainda tem: sua vida. Já que ia ser um homem morto de qualquer jeito, opta por se render e cometer o ato mais grotesco no mundo do crime: abre o bico para a lei em uma delação premiada, sua tão antiga inimiga.
A trajetória que Martin Scorsese nos apresenta em Goodfellas é um constante paradoxo, atrai e afasta, excita e assusta. Os criminosos fazem sua história ao mesmo tempo que apagam as dos que estão em seu caminho. Quase um épico urbano dos anos 90. O filme é um obrigatório do cinema americano, revolucionando a forma com que o crime e a Máfia eram antes abordados. Cutuca o desejo escondido em nós pela transgressão e pelo poder, para pôr um fim na invisibilidade do sujeito comum. Somos invisíveis perto de nossos protagonistas. E, assim como Henry Hill, somos todos testemunhas dos Bons Companheiros.