Nathalia Tetzner
No cativeiro de Oh Dae-su (Choi Min-sik), papéis de parede repetidamente estampados com favo de mel, uma televisão de tubo em ótimo estado e um gás capaz de fazer adormecer compõem o cenário desconcertante. O quarto nunca é invadido pela luz natural, gotas de chuva ou o barulho da cidade, mas é penetrado por uma câmera de Cinema condicionada à perspectiva restrita do personagem, sufocando o espectador junto dele. Em 2003, o diretor sul-coreano Park Chan-wook lançou ao mundo a sua interpretação da série de mangá japonesa Old Boy (1996-1998) que, com uma paleta de tons verde, vermelho e roxo, se propôs a retratar a enorme prisão que acorrenta a sociedade e, principalmente, ocasionou o mais belo trauma geracional com um plot twist digno de calafrios.
O protagonista pode até questionar “se eles tivessem me contado que seriam 15 anos (de cativeiro), seria mais fácil de suportar ou não?”, porém, para o público, Oldboy nunca perde os efeitos colaterais nem um pouco suaves que somente Chan-wook é capaz de realizar. Completando 20 anos de subversão, o longa ganhou uma versão remasterizada, distribuída no Brasil pela Pandora Filmes, que prova como ele consegue ser ainda mais chocante quando assistido pela segunda ou centésima vez. Sendo o filho do meio da Trilogia da Vingança, também composta por Mr. Vingança (2002) e Lady Vingança (2005), o filme carrega o uso da ultraviolência como em Laranja Mecânica (1972), de Stanley Kubrick. Dessa vez, o mandante não é a resposta, mas sim o motivo.
Repleto de diálogos como “essa menina que chora por nada” e “ela era uma vadia”, as reviravoltas de Oldboy se sobressaem como um ótimo exemplo de homens falhando miseravelmente ao teorizar sobre como uma garota se sente em certas situações. Asas de anjo e alucinações com formigas voltando sozinha de madrugada no metrô constroem Mi-do, a figura feminina central do longa. Kang Hye-jeong é a atriz perfeita para o papel que, embora idealizado por uma maioria masculina, encontra um certo equilíbrio, aprimorado pelo diretor posteriormente em A Criada (2016). Ao final, a sua trajetória se conecta com mais duas mulheres, a hipnóloga Yoo Hyung-ja (Lee Seung-shin) e a leitora de Sylvia Plath, Lee Soo-ah (Yoon Jin-seo), que acaba levando a biografia da autora ao pé da letra.
“Caso você fique à toa, em uma cabine telefônica em um dia de chuva e encontre um homem cuja face se esconde em uma sombrinha violeta, eu sugiro que você fique perto de uma TV”. Se a história de Nobuaki Minegishi e Garon Tsuchiya liberta Oh Dae-su para mostrar como o mundo do convívio social se trata de uma prisão rodeada por dilemas morais, o formado em filosofia Park Chan-wook mergulha até o fundo. Desde os delírios com uma comunidade de formigas até a relação íntima com o universo da Televisão – em que amor, educação e religião são encontrados com facilidade pelo controle remoto –, o cineasta tira sarro do protagonista ao passo em que se deixa levar pela simetria e espelhamento de cenas, elementos característicos que entregam para o público quem está no comando.
Com o parceiro de longa data Chung Chung-hoon na Fotografia, a película assume com intensidade as cores e os ângulos perturbadores que, juntamente de uma câmera em movimento constante, ditam a atmosfera estilosa desse clássico thriller neo-noir. Ryu Seong-hee, também envolvida em grande parte da filmografia de Chan-wook, traz para o design de produção o enjoo e a ansiedade causados pelos elementos que compõem os cenários, desde o cativeiro extremamente decorado até a cobertura minimalista de Lee Woo-jin (Yoo Ji-tae). A trilha sonora de Jo Yeong-wook não destoa e é responsável por desencadear calafrios a cada acorde, ecoando os pensamentos mais impróprios dos personagens que, por sua vez, ressoam na consciência da audiência.
Diante de tantas qualidades, os pontos baixos da obra se concentram no excesso de flashbacks que colocam em dúvida o roteiro de Park Chan-wook, Lim Joon-hyung e Hwang Jo-yun. Atrelado ao uso dessa ferramenta, a narração do ‘eu do futuro’ facilita o trabalho dos escritores em explicarem uma narrativa complexa para o espectador. No entanto, mesmo que dotado de ressalvas, o trio amarra a história e proporciona o verdadeiro desenvolvimento do protagonista, um homem inicialmente devotado em anotar os nomes de quem magoou em busca de respostas como um diário de prisão até perceber que está escrevendo uma autobiografia sobre seus atos perversos: “seja uma pedra ou um grão de areia, na água eles afundam da mesma forma”.
Os acasos satíricos quase extraordinários, como o fato do primeiro humano que Oh Dae-su encontra após anos se tratar de um suicida, transformam o longa em um estudo sobre ética e salvação. Na pele do encarcerado, o veterano Choi Min-sik é esplêndido. Seja comendo um polvo vivo ou lutando contra dezenas de homens com um martelo em um corredor estreito, o ator entrega a dramaticidade necessária. Tal poder é realçado quando Min-sik contracena com Yoo Ji-tae, intérprete do um tanto quanto ninfomaníaco Lee Woo-jin. Contrariando o mantra que eles repetem “ria e o mundo rirá com você, chore e você chorará sozinho”, ambos se completam em cena e choram juntos ao final, ainda que por instintos diferentes, tornando nebulosa a divisão entre o que define um mocinho e um vilão em Oldboy.
“Embora eu não passe de um animal… não tenho o direito de viver?”
Vencedor do Grand Prix do Festival de Cannes de 2004, onde arrancou elogios do presidente do júri, Quentin Tarantino, Oldboy de Park Chan-wook é, sem dúvidas, a melhor adaptação do mangá original. Por ser uma produção fora de Hollywood, o filme não escapou de ter um remake questionável assinado por Spike Lee que somente alimenta a ânsia por vingança dos fãs do cineasta sul-coreano. Passadas duas décadas desde seu lançamento, a produção é explicitamente violenta, porém, é a imaginação que causa o medo e as consequências em torno de Oh Dae-su e Lee Woo-jin, os dois alunos do Colégio Católico Sangnok reunidos pela página online Evergreen Old Boys. Belíssimo, o longa é um trauma geracional tanto para a árvore familiar envolvida na trajetória dos personagens, quanto para o público.