
Guilherme Veiga
O Cinema, nascido e criado envolto a subjetivismo, nunca foi unânime. Percebemos isso ao questionarmos quem foi o maior idealizador dessa Arte, por exemplo. Não existe resposta certa, não há consenso. Uns respondem baseados em apego, outros levam qualidade em conta, mas nunca surge um denominador comum – e ainda bem que é assim. Nem mesmo se delimitarmos o conjunto de opções: nos filmes de máfia, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola despontam; no Cinema blockbuster, Steven Spielberg e James Cameron são pilares; no terror, Wes Craven e John Carpenter e a lista continua não importa o quão nichada. Mas como para toda regra há uma exceção, ao falarmos de animação estamos falando de Hayao Miyazaki, ele e somente ele.
Continuando um movimento recente de se entender e se eternizar como parte da história da Sétima Arte (já que a própria indústria não reconhece isso), a exemplo do que Spielberg fez com Os Fabelmans ou Scorsese emulou de forma sútil em Assassinos da Lua Das Flores, o lendário fundador do Studio Ghibli também retorna da aposentadoria. Coppola já tem 84 anos; Clint Eastwood, 92; Ridley Scott, 86; Craven e Carpenter já se foram, e por mais que doa perceber que pessoas que indiretamente fizeram parte de nossas vidas estão nos deixando, eras se encerram. E é com O Menino e a Garça que Miyazaki, com seus 83 anos, prepara a si e ao espectador para o fim.

O Menino e a Garça conta a história de Mahito, um menino de onze anos que, após perder sua mãe na Segunda Guerra, se muda para uma região bucólica, depois de seu pai começar a se relacionar com sua tia. Na fazenda em questão, tentando se adaptar com sua nova dinâmica familiar e ainda revivendo o luto, ele encontra uma garça mágica, que o instiga a desbravar uma torre abandonada da região. Após o desaparecimento de sua agora madrasta Natsuko, Mahito é atraído pela garça para dentro da torre, que joga os dois em uma espécie de submundo mágico, onde precisam encontrar Natsuko e trazê-la de volta ao ‘mundo real’.
As aspas nas últimas palavras do parágrafo anterior são intencionais, não para desqualificar o gênero animação, mas sim porque Miyazaki propositalmente brinca com (e ultrapassa) as fronteiras do que é real. O diretor é adepto ao xintoismo, crença japonesa que prega o culto à natureza e a aproximação entre o mundo e o sagrado. Dessa forma, suas obras sempre representaram a união das duas religiões do cineasta. Em uma, ele é devoto, na outra, Deus.
Na tradução original do japonês, e que também foi o primeiro título provisório do longa no exterior, ele se chamaria How Do You Live? (Como Você Vive?). Mesmo esse nome não atendendo o molde do qual todas as outras obras do Studio Ghibli foram nomeadas, talvez ele fosse o mais certeiro. A Arte de Miyazaki é, em suma, reflexiva, diferente do que a animação, principalmente a ocidental, tentou imputar como somente uma representação de um mundo fantasioso, impulsionada pela Disney – até por isso, ele detesta ser denominado de Walt Disney japonês. Dessa forma, O Menino e a Garça instiga esse questionamento ao espectador, dessa vez através da reflexão do diretor acerca da pergunta.
O processo criativo do longa começou em 2016 e, em 2018, Takahata faleceu, na idade que o diretor de O Menino e a Garça tinha durante seu lançamento no ano passado. De acordo com Suzuki, o tio-avô teria mais tempo de tela, mas a produção foi reformulada após Miyazaki ter que lidar com o luto, razão essa que torna a angústia de Mahito ainda mais verossímil e dilacerante.
Tais razões fazem com que a mais recente obra seja a mais pessoal não só do diretor como do estúdio ao tratar de forma tão próxima e reimaginada um tema como a morte. É preciso uma nobreza gigantesca para encarar uma temática tão próxima de si, para enfiar o dedo na própria ferida que custa cicatrizar e fazer uma dor tão pungente virar Arte.

Chega a ser um escárnio que uma companhia tão importante para a animação só tenha um Oscar com A Viagem de Chihiro. Porém, para uma organização que custa a aceitar o gênero, conceber que existem produções fora do eixo americano é um passo grande demais. Por mais que a trilha sonora incrível de Joe Hisaishi tenha sido esnobada, o longa chega para a disputa de Melhor Animação com um line-up bastante favorável, no qual vai disputar com um monopólio da Pixar agora cambaleante, que tem como representante Elementos, e com Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, que chega sem o mesmo fôlego de seu antecessor.
Assim como as peças que compõem os mundos de O Menino e a Garça, a obra chegou no momento certo para coroar uma filmografia. Entre as idas e vindas das supostas aposentadorias do diretor, uma coisa é certa: sua volta é sempre pelo seu amor incondicional pela animação. Dessa vez, o tom de despedida é verdadeiramente mais real, só que menos amargo. Miyazaki entrou mais uma vez em sua epifania fantástica e dessa vez em seu íntimo, abriu as portas de seu legado e saiu, mas deixou a porta aberta para nós. E sempre seremos bem-vindos.