Isabella Siqueira
Não é surpresa para ninguém que Anya Taylor-Joy é uma das atrizes mais promissoras da nossa época desde que estrelou A Bruxa. Uma das séries queridinhas de 2020, O Gambito da Rainha reafirma o talento da jovem que conquistou o público e a crítica, assim, a semelhança entre a protagonista da minissérie e de sua intérprete está justamente na característica de prodígio que ambas possuem. Com a implacável Beth Harmon nos mostrando como os jogos de xadrez podem ser tão interessantes quanto as lutas em Rocky (1976) ou Karate Kid (1984).
A produção da Netflix, que estreou no final de outubro, já é umas das mais assistidas de toda a plataforma, e não é por menos. Visto que, a jornada da protagonista leva ação e emoção para o que imaginamos serem partidas chatas de xadrez, sendo impossível não torcer para a jovem que prova seu talento contra todas as expectativas que atuam contra ela.
Logo no primeiro episódio já fica claro o inimigo da trama e de Beth: ela mesma. A prodígio de alguma forma consegue ser o empecilho em sua carreira, mas ainda sim o buraco é mais embaixo. Após o que parece uma cena da jovem de ressaca e atrasada para uma importante partida em Paris, somos levados ao passado conturbado da menina, que após a morte da mãe é enviada para um orfanato em meados de 1950. Sendo apenas mais uma entre várias meninas que esperam uma adoção, Beth logo começa a se esgueirar para praticar xadrez no porão do lugar.
Após essa primeira fase da série, a protagonista adentra mais um espaço familiar desestruturado, mas que ao mesmo tempo a permite ter liberdade para explorar seu talento nato. Adotada por um pai calado e que desaparece rapidamente, a protagonista estabelece uma relação de cumplicidade com sua mãe adotiva e aspirante a empresária, Alma Wheatley (Marielle Heller). A relação entre Anya e Heller é, inclusive, um dos pontos mais agradáveis da obra, mesmo que inicialmente reunidas por conveniência, com a junção desses indivíduos que enfrentam a solidão e o abandono comovendo pela sensibilidade.
Com muitas vitórias e uma certa arrogância, essa bem justificada, a trama acompanha Beth em uma jornada onde ela derrota e contesta todos que duvidam dela. E mesmo que a personagem recuse ser retratada pelo diferencial de ser mulher, o machismo clássico dos anos 60 se encontra em cada olhar dos que debocham da prodígio. Logo que começa uma tour por campeonatos pelo país todo, ela concorda em abrir mão de sua juventude e da realidade comum do colegial.
Ao longo dessas partidas e com a descoberta do desejo de derrotar o clássico inimigo russo, considerando claro o contexto da Guerra Fria, alguns nomes bem carismáticos vão ganhando caminho na vida da enxadrista. A exemplos dos jogadores Harry Beltik (Harry Melling) e Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), que apesar de tentarem entrar no mundo e coração fechado da moça, acabam frustrados pela verdadeira obsessão dela: o xadrez.
Contudo, apesar do caminho brilhante que traça em cada partida, O Gambito da Rainha mostra que a derrocada da personagem é inevitável. Os vícios que a acompanham também são o que garantem, na cabeça dela, suas vitórias. Para a protagonista, é impossível vencer sem a bebida ou as pílulas verdes, uma espécie de calmante que surge logo na infância como uma rotina para ela. Mas, o que ela não percebe é o quanto a situação vai se tornando insustentável ao passar do tempo, e como o preço da genialidade não é justo ou gentil.
A solidão da personagem se acentua pela negação em pedir ajuda e se conectar com outros, apesar dela superar as questões da adolescência como as crises de autoestima e a descoberta do sexo, as barreiras emocionais continuam sendo o demônio de Beth Harmon. Contudo, apesar da impressão de estar sempre sozinha, algumas figuras amigáveis adentram carinhosamente sua vida, como o Sr. Schaibel (Bill Camp), que foi quem lhe ensinou xadrez e por sua vez apostou em seu futuro, e Jolene (Moses Ingram), amiga do orfanato, que ressurge justo no fundo do poço em que a moça se encontrava.
Apesar da trama em si ser muito interessante e vitoriosa em prender quem assiste, a maestria de Anya Taylor-Joy é impecável. A atriz encara uma personagem muito peculiar, com jeitos e maneirismos característicos nas partidas e também momentos dançantes que exalam charme. Ao mesmo tempo chama a atenção a caracterização convincente dos anos 60, desde as roupas mais simples até os vestidos elegantes que ela ostenta na Europa, o amadurecimento da personagem é visível e claro, muito estiloso.
Por mais que O Gambito da Rainha se passe em suma nos Estados Unidos, curiosamente as gravações aconteceram em Berlim e no Canadá. O cenário deprimente do orfanato e as imponentes salas que abrigam as tensas partidas de xadrez também não passam despercebidas. Baseada na obra homônima de Walter Davis lançada em 1983, a adaptação da Netflix acerta também na fotografia e direção, realizada por Scott Frank e Allan Scott, que se complementam bem com o roteiro afiado e figurino belíssimo da produção.
Até para quem não entende nada de xadrez e desse mundo complicado de regras e estratégias, The Queen’s Gambit torna emocionante assistir cada partida. Os olhos da focada Beth Harmon são o destaque em diversas cenas, mesmo que não intencionalmente, e a expressão da atriz é um deleite para o público, que vibra a cada movimento, suspiro e por fim, vitória. Histórias sobre amadurecimento nunca saem de moda, e se tiverem a presença de Anya Taylor-Joy elas ficam melhores ainda.