Ana Cegatti
Por que estamos lutando por um pedaço de torta se a torta está podre?
– Alison Bechdel
O desastre de Chernobyl, a guerra Irã-Iraque e o corte mullet foram alguns episódios hediondos que fizeram dos anos 1980 um período inesquecível para o mundo. No entanto, o posto de maior atrocidade da década foi designado à Alison Bechdel, cartunista estadunidense que ousou ganhar as páginas dos jornais com tirinhas sobre uma ameaça maior do que qualquer explosão nuclear: lésbicas. Em uma singela homenagem, a editora Todavia publica uma coletânea, traduzida por Carol Bensimon, das principais histórias da série Perigosas Sapatas, cuja essência está em um grupo de amigas lésbicas praticando atos tenebrosos tais como trabalhar e lavar a louça. No fim, elas são perigosas para quem?
Ao longo de 40 anos, as tirinhas de Bechdel alugaram um espaço significativo tanto nas folhas impressas, quanto nas cabeças conservadoras que engoliram em seco os aperitivos da autora. Esta, por sua vez, também é o nome por trás de Fun Home, uma autobiografia vencedora do prêmio Eisner e adaptada aos palcos da Broadway. Apesar dessas conquistas memoráveis, o legado de Alison Bechdel não começa em estatuetas nem termina quando as cortinas do teatro se fecham. Enquanto a maioria das pessoas encantava-se com HQs sobre homens mascarados com um bíceps relativamente grande, Bechdel era vista como figura materna, ou melhor, como uma heroína sem capa por garotas lésbicas.
Sabe-se que, em tempos recentes, a cultura pop está tentando abraçar a letra L, seja mostrando beijos homoafetivos de suma irrelevância, como em Star Wars, ou esbanjando lésbicas brancas de batom em histórias medíocres. Héteros, gays ou bissexuais podem até tentar, mas nunca entenderão, de fato, o sentimento tão vazio quanto intenso de ver uma paixão se esvaindo pela inevitável priorização de um homem e o medo instintivo de ficar sozinha e ser, consequentemente, esquecida.
Apesar de parecer óbvio, é preciso reiterar que não há ninguém melhor para retratar uma mulher lésbica do que uma mulher lésbica. Dessa forma, Alison Bechdel honra a própria realidade e coloca nada além de puro amor em cada uma das personagens, talvez com um propósito empático de resgatar um amor que nunca recebeu. A autora transforma as protagonistas Mo, Toni, Harriet, Clarice, Louis, Ginger e Sparrow em companhias propositalmente imperfeitas diante da solidão imposta à mulher lésbica, que não tem o luxo de errar, ou melhor, ser bagunçada e perigosa.
As personagens de O Essencial de Perigosas Sapatas são verdadeiras agentes do caos. Embora não soltem teia pela mão ou saibam voar, elas são capazes de algo ainda mais impressionante: beijar mulheres. De fato, não é um superpoder, mas é um ato revolucionário cuja desenvoltura é atravessada por um eterno conflito entre o pessoal e o político. É nesse caminho contrastante e tortuoso pelo qual a protagonista Mo investiga suas facetas e as expõe de forma íntima e genuína, de tal modo que os rabiscos e as palavras parecem ganhar vida a fim de acolher as leitoras lésbicas em uma forma da obra de dizer: “eu te entendo”.
No imaginário tradicional, o significado de revolução jamais recairia sobre uma mulher de óculos redondos desesperada por atos carnais. Além disso, o que as pessoas veriam de tão inspirador nessa mesma mulher cujo nome poderia ser facilmente dado a um animal de estimação? Mo não nasceu para cumprir um propósito divino de emancipação lésbica, ou seja, ela não é uma figura inalcançável ou idealizada. Aliás, a graça está na possibilidade de encontrá-la fora das páginas, seja na famosa Vila Madalena ou em algum bar de esquina interiorano. Afinal, existem muitas Mos mundo afora esperando por uma chance de serem vistas, ouvidas e lidas.
O grande desafio de Mo em Perigosas Sapatas não envolve um ato descomunal físico ou político, mas pessoal. A protagonista faz questão de expressar sua intelectualidade e consegue articular explicações para qualquer evento geopolítico. No entanto, ela se desespera ao perceber que seu pragmatismo não passa de uma cortina de fumaça para um medo colossal do incontrolável: ter sentimentos. Assim, sua jornada é pautada pelo conflito entre conhecimento e ingenuidade, de tal modo que, eventualmente, a militante abaixa a guarda e consegue perceber o quão belo é se deixar levar pelo inexplicável.
Do começo ao fim, o grupo protagonista não cede à imparcialidade patética da esfera sociopolítica. Verdade seja dita: é um mundo muito pequeno para as palavras “lésbica” e “imparcial” coexistirem. Querendo ou não, o lema feminista dos anos 1960, “o pessoal é político”, é uma aberração que nunca deixou de assombrar o indivíduo cujo rótulo só pode ser um: frouxo. Em suma, a autenticidade carregada por cada uma das personagens faz da obra uma bagunça linda demais para ser arrumada.
Diante de representações miseráveis da letra L na cultura pop, Perigosas Sapatas é um respiro, ainda que sua complexa doçura deixe qualquer um sem ar. Aliás, a obra reitera que ser doce não é usar esmalte ou andar de salto, isto é, Bechdel coloca uma lupa em mulheres cujos cabelos das axilas são mais longos que os da cabeça. Em suma, incluir a desfeminilidade, assim como a interseccionalidade, é um soco no estômago para quem acredita que postar “girl power” nas redes sociais enquanto divide quarto com racista e coleciona acusações de assédio é empoderador.
A lesbiandade não é um conto de fadas e seria um erro retratá-la como tal. O fato é: há traições, medos e incertezas na narrativa cuja aliança com a realidade é um acerto de Alison Bechdel. Esta, em nenhum momento, abandona a verdade, de tal modo que as protagonistas da HQ estão despidas de filtros e se entrelaçam com cenários nos quais elas encaram suas interioridades e amadurecem. Em outras palavras, além das batalhas travadas com a conjuntura patriarcal e heteronormativa, as protagonistas enfrentam conflitos internos, mas não o fazem sozinhas.
Perigosas Sapatas é, sobretudo, um grito melódico o qual cumpre um nobre dever de espantar o maior medo de qualquer garota lésbica: a solidão. A obra de Bechdel é um lar que acolhe corações ansiosos por uma chance de disparar sem temor e expulsa mentes heterossexuais frustradas, as quais têm a pachorra de dizer que queriam ter nascido lésbicas. Diga-se de passagem: a obra é capaz de convencer qualquer um a dar o nome de “Mo” para o animal de estimação. No fim, ser lésbica é acordar todo dia com um impulso de sentir tudo o que há para sentir e ser perigosa é deixar o Sol entrar em um ambiente que ama o frio – e ser revolucionária é ser os dois.