Ana Laura Ferreira
Desde a Ilíada, com os épicos poemas escritos por Homero, a história é contada pelos vitorioso e aponta apenas uma versão dos fatos. Até hoje essa estrutura se mantém, fazendo com que os “vitoriosos” da hierarquia social falem por aqueles que foram silenciados. O Escândalo (Bombshell) segue essa mesma linha narrativa ao pautar o assédio sexual sofrido pelas jornalistas da FOX News sob a visão, roteiro e direção de homens, que jamais entenderam a situação das vítimas por completo.
Ao decorrer do filme acompanhamos três importantes jornalistas do veículo, que é o principal canal de notícias dos Estados Unidos, e suas lutas internas e externas para enfrentar o assediador e diretor chefe da empresa, Roger Ailes (John Lithgow). São elas a âncora Megyn Kelly (Charlize Theron), a apresentadora Gretchen Carlson (Nicole Kidman) e a aspirante ao estrelato Kayla Pospisil (Margot Robbie), a única personagem fictícia relevante a trama. Com um primeiro ato longo e detalhista, demoramos a ser introduzidos devidamente no assunto principal do filme. Entretanto, esse extenso background nos ajuda a entender a hierarquia profissional e moral exercida na empresa.
Utilizando-se de recursos como a quebra da quarta parede, somos prontamente incluídos naquele cenário caótico. É reservada ao espectador a visão quase que de um estagiário, que está autorizado apenas a observar. O estilo de filmagem documental contribui para criarmos esse sentimento de inclusão, entretanto a câmera exageradamente tremida cansa ao decorrer do filme e traz, também, certa artificialidade. Outro recurso cinematográfico muito usado na trama é o chamado Deus Ex-machina. Ligado, nesse caso, a passagem abrupta do tempo, ela age como um facilitador dentro da história, cortando-a em capítulos fechados.
Apesar de trazer qualidades técnicas pouco avançadas, o grande pesar de O Escândalo é seu olhar machista e misógino sobre o caso. Dirigido por Jay Roach – de Austin Powers (1997) e Borat (2006) – e roteirizado por Charles Randolph – de A Grande Aposta (2015) – o longa coloca suas principais funções nas mãos de homens, os quais nunca conseguiram entender, em sua completude, os medos, traumas e aflições que permeiam o assédio sexual. Essa visão robótica e masculinizada dos fatos torna o filme pouco imersivo nos sofrimentos das vítimas, abrandando a gravidade da situação.
A câmera, com planos fechados e detalhes, chega a ser conivente aos abusos feitos por Ailes, ao sexualixar suas personagens de forma a criar justificativas ao ocorrido. Uma cena em especial causa no mínimo indignação ao espectador pela duvidosa escolha de planos. Protagonizada por Margot, a direção prefere filmar suas pernas e sua calcinha durante o momento do assédio à seu rosto que transparece tremenda agonia. Em outra cena a personagem de Robbie contesta Charlize Theron por suas ações, culpabilizando a jornalista pelos atos de Roger em uma construção caricata e machista, que responsabiliza as vítimas e encobre os abusadores.
Como um Oscar Bait moderno, o roteiro se distancia do drama – que seria o gênero natural para tratar o assunto – e pende para um lado cômico e satírico que prejudica seu desenvolvimento ao quebrar o estilo narrativo. Essa abordagem prejudica também a expansão das personagens dentro do universo criado. Por ser baseado em fatos reais é aceitável que o filme se contenha para manter a veracidade, porém em O Escândalo o roteirista tinha em Kayla sua “carta na manga”. Por se tratar de uma persona ficcional, seu espaço na narrativa poderia ter sido usado para expandir em maior potência o assunto e os assédios, entretanto, ela é reduzida a um personagem genérico e pouco expressivo, dados os traumas sofridos.
Contudo, o longa também conta com pontos positivos, sendo o principal deles sua primorosa maquiagem. Ao transformar Charlize em uma cópia exata da real Megyn Kelly, o filme faturou os prêmios Critic’s Choice Awards, Bafta e Oscar. Concorrendo em outras categorias, Theron foi indicada a Melhor Atriz e Margot Robbie a Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar 2020. Outro ponto positivo é atribuído ao roteiro, que aborda as opressões vividas dentro do império Fox News e a imposição sofrida pela equipe para apoiar Roger Ailes e invalidar as vítimas.
Apesar de abordar um tema que deve ser debatido e trazer uma história que deve ser contada, O Escândalo se restringe a uma visão pouco crítica dos fatos. Diferente da minissérie The Loudest Voice (2019), que aborda o mesmo ocorrido, mas de maneira mais profunda, o filme se perde ao tentar ser politicamente correto e cai em contradições, culpabilizando suas heroínas. Extremamente problemático, O Escândalo é um filme que deve ser assistido por todos para que possam tomar consciência que certas história devem ser contadas por suas minorias, e para que entendamos que a visão masculina dos fatos é apenas um recorte mal feito e seletivo do que lhes interessa.