Mariana Nicastro
Apenas escute a melodia do trânsito na cidade! Carros e táxis passam o tempo todo, grupos diversos de pessoas riem e conversam em voz alta, e música ecoa de bares, pubs e casas de shows. As luzes dos teatros e das lojas iluminam as ruas largas. O título de um filme clássico pisca no letreiro do cinema. Quantos sonhos, promessas e ilusões vivem nos grandes – e famosos – centros urbanos, repletos de cultura, moda e fama? Bom, Noite Passada em Soho evidencia o que acontece quando alguns desses sonhos são arruinados, confrontados com uma realidade que pode ser cruel, brutal e assustadora.
Dirigido por Edgar Wright e roteirizado por ele, em parceria com Krysty Wilson-Cairns, o longa chegou aos cinemas brasileiros em 18 de novembro de 2021. Antes disso, foi exibido nos Festivais de Veneza, Toronto e Londres, chegando ao Brasil pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O diretor, conhecido por seu estilo ágil, astuto e criativo, revelado em obras como Em Ritmo de Fuga (2017), aqui apresenta o gênero abordado como novidade: um suspense psicológico e retrô, com toques de inspiração do Terror dos anos 60 e 70. Esse fator, somado a uma temática instigante, curiosa e com uma premissa original, joga holofotes sobre Last Night in Soho, que, como resposta, entrega ao espectador uma experiência assombrosa, envolvente e singular.
Essa experiência é contada sob a perspectiva de Eloise (Thomasin McKenzie) – ou Ellie –, uma jovem que deixa sua cidadezinha no interior da Inglaterra para viver o sonho de estudar Moda em Londres. Ao chegar na capital, porém, as coisas se revelam muito mais complicadas do que ela imaginava. Sentindo-se solitária, desconfortável e nem um pouco acolhida em seu novo lar, a garota encontra refúgio em uma pensão, que ganha sua simpatia com uma localização agradável e uma decoração tirada diretamente dos anos 60.
Como se a estética não fosse suficiente por si só, em sua primeira noite no ambiente ela é surpreendida ao ser, de fato, transportada para a época em questão: uma Soho sessentista, perfeitamente reconstruída, em sonho vívido. Lá, ela se enxerga no corpo de Sandie (Anya Taylor-Joy), uma aspirante a cantora, cuja beleza, determinação e sede por fama despertam sua admiração e inspiração.
As visões logo se tornam recorrentes, se repetindo todas as noites, e passam a confundir a jovem a respeito do que é real e do que não é. O que se inicia de forma inocente e divertida, logo se torna um pesadelo, quando, aos poucos, Ellie percebe que está presenciando uma história triste, apavorante e real, que se mistura com a sua própria e passa a assombrá-la com fantasmas do passado.
A trama é construída de forma que o suspense envolvendo a trajetória de Sandie em busca de reconhecimento, nos anos 60, é intercalado com a adaptação de Eloise à mesma Londres, cerca de sessenta anos depois. A diferença é que, enquanto a cantora precisou enfrentar seus desafios completamente só, Ellie, agora, os repassa junto dela, investigando seus passos e tentando descobrir quais foram seus desfechos, junto ao público.
A história progride satisfatoriamente no Terror psicológico e nos dramas do passado, enquanto ambos se misturam. Em mãos erradas, essa alternância de foco poderia se tornar confusa, artificial e desencadear uma ruptura no ritmo do filme. Em Noite Passada em Soho, porém, a direção de Wright acerta ao desenvolver crescentes acontecimentos bizarros, assumidamente surrealistas. Eles criam vida para além dos pesadelos de Eloise e geram questionamentos cativantes quanto à origem daquele mal e quais serão as suas consequências.
Dentro de um roteiro tão recheado de detalhes e ideias, nem tudo recebe a mesma atenção e desenvolvimento, como é o caso de alguns aspectos que envolvem Eloise. As visões que a garota tem de sua mãe e as dúvidas acerca de sua sanidade são alguns desses pontos, que rapidamente acabam em segundo plano. No lugar, Noite Passada em Soho abraça completamente a investigação da vida de Sandie, quase como se admirasse esses novos fatos com o mesmo interesse de sua protagonista, já que são eles que movem o enredo.
As boas ideias e o olhar criativo de Wright, contudo, prevalecem. Seja no uso de técnicas que divagam entre o horror psicológico e o físico, ou na inventividade para criar revelações e reviravoltas surpreendentes nos momentos certos, o longa é repleto de cenas angustiantes e sufocantes, e o desespero de Eloise para interferir na realidade de Sandie se faz crível e compartilhado por quem assiste. Os fantasmas dos anos 60, que reverberam no presente, tornam-se mais ameaçadores, violentos e macabros, conforme as explicações são gradativamente fornecidas.
Todas as sensações provocadas pelo filme são intensificadas com elementos sonoros e visuais, minuciosamente pensados. A recriação dos anos 60 é bela, desde os cenários até os figurinos. As intensas luzes coloridas geram contraste entre os dois períodos e são usadas, principalmente, em momentos de perigo e tensão. Esse recurso é bastante oportuno, considerando as referências de época, e muito utilizado nos giallos do horror italiano, como em Suspiria (1977), de Dario Argento.
A fotografia, dirigida pelo sul-coreano Chung-hoon Chung, é impecável e, sem dúvidas, um dos maiores destaques da obra. O trabalho dele contribui para a construção do terror, é imaginativo – como pede a direção de Wright – e extremamente habilidoso ao criar cenas perfeitas, nas quais as atrizes principais são simultaneamente representadas. Jogos de espelhos, sets duplicados, cenas coreografadas e a alternância ágil entre planos garante um espetáculo visual que enriquece Noite Passada em Soho.
Dentre a lista de méritos do filme, as atuações são um show à parte. Os destaques são, sem dúvidas, as duas protagonistas, que representam papéis opostos. McKenzie simboliza medo, curiosidade e simplicidade com excelência. É fácil sentir empatia pela tímida Ellie. A personagem apresenta vitalidade e sua presença em cena é maior quando ela se sente segura e confortável, situação que oscila diante dos dramas enfrentados, e exige versatilidade da atriz.
Em contrapartida, a maravilhosa Taylor-Joy entrega uma Sandie determinada, corajosa e confiante, aos poucos revelando sua complexidade, conforme lida com o caos de seus dias. Ela, como sempre, brilha e esbanja elegância em sua atuação, e revela todas as camadas de seu papel com maestria. Anya mostrou habilidade até mesmo cantando, em sua icônica versão da canção Downtown (1965), de Petulia Clarke, para o filme. A música carrega um otimismo a respeito da vida em uma grande cidade, o que dialoga de forma irônica com os acontecimentos do longa.
As demais atuações também são dignas de elogios, mesmo quando os personagens recebem menos tempo de tela. Miss Collins, interpretada por Diana Rigg, brilha em um papel póstumo, já que a veterana atriz faleceu antes do lançamento do longa. Matt Smith (o Doctor, mas dessa vez não o viajante do tempo da história) entrega uma representação certeira de um Jack detestável e assustador, que engana a Sandie, Ellie e a nós, ao se apresentar como simpático e atencioso, em um primeiro momento.
Quanto às suas revelações e ao desfecho, o filme carrega uma crítica social, com forte temática de violência, esta vivenciada por Sandie. A obra evidencia a triste realidade de abusos, manipulações e ameaças enfrentadas pela personagem quando jovem, enquanto buscava construir sua carreira musical. Para isso, se utiliza da sugestividade ao apresentar esses acontecimentos através de diálogos entre a cantora e Jack, ou representando através de fantasmas com rostos borrados, os homens para quem ele a oferecia e vendia.
O longa remete a sensações de desânimo, dor, agonia e confusão vividas por ela, enquanto vítima. Para isso, se usa de câmeras trêmulas e inquietas focadas no rosto de Sandie, em diversas ações da personagem. Noite Passada em Soho, entretanto, é ousado e imprevisível. Ao se encaminhar para sua resolução, a produção surpreende com uma reviravolta de vingança, sob uma perspectiva inesperada.
A partir disso, a obra tenta responder às questões levantadas ao longo de seu desenvolvimento e peca pelo excesso, já que são muitas. Pontas soltas, por vezes, permanecem dessa forma. A conclusão dada à Sandie a respeito dos crimes cometidos por ela acaba sendo rasa e incoerente comparada à complexidade de seu desenvolvimento e da personagem em si.
Trata-se, afinal, da origem dos traumas que a tornaram fria, violenta e sanguinária. A perspectiva de uma vítima que se torna a assassina. Uma dualidade que permitiria discussões melhor aproveitadas e um final mais marcante e impactante para Sandie, se bem trabalhada. A relação entre ela e Eloise também carece de maiores explicações, e a conexão entre elas se resume, de forma insuficiente, à tendência da segunda a uma sensibilidade ao sobrenatural.
Edgar Wright de fato acerta ao criar um suspense curioso e atrativo, repleto de personalidade. Em sua ânsia e ambição de elaborar diversas situações complexas, o diretor entrega resultados finais razoáveis, porém discretos e limitados, que destoam do desenvolvimento deslumbrante e detalhista do longa. No entanto, em momento algum, isso prejudica a experiência como um todo: não afeta o encanto e originalidade da obra, apenas sugere que ela teria muito potencial para um desfecho mais satisfatório, completo e engenhoso.
Dialogando com o surrealismo, com referências de um Terror psicológico de décadas passadas e uma elegante reconstrução de outra época, o filme é muito mais do que aparenta em sua superfície. A obra apresenta diversas camadas interessantes e sequências imersivas, que ocorrem sobre um nostálgico plano de fundo de viagem temporal. Noite Passada em Soho evidencia a forma como uma tragédia do passado desencadeia uma série de eventos traumatizantes e é capaz de criar fantasmas eternos, no sentido alegórico e também literal.