“Ela foi embora. Eu me deitei na terra úmida. Estava cansada. Só queria ficar ali deitada, para sempre, e não fazer absolutamente nada.”
Jamily Rigonatto
Algumas palavras são capazes de encantar com a sonoridade aconchegante que têm, às vezes – se você souber usá-las – pode transformar o mundo real, cheio de sua concretude bruta, em algo curioso e burlesco. É assim que Lucia Berlin desenvolve os vocábulos em Noite no paraíso: Mais contos, livro publicado pela Companhia das Letras em Agosto de 2022. No texto, a autora explora os aspectos da vida sob seu olhar singular e lança luz à vida – mesmo quando esta parece encoberta por trevas inebriantes.
Os personagens de Lucia são plurais, mas visivelmente retirados de contextos reais dos quais ela fez parte. Em sua jornada de 68 anos, iniciados em 1936 e terminados em 2004, a escritora estadunidense, nascida no Alasca, repousou suas vivências no Chile, México e Estados Unidos, o que fica marcado em cada uma das grafias de suas obras. Além de passar por vários lugares, ser mãe de três filhos, ter três casamentos mal sucedidos, uma leva de empregos diversos e ainda lutar contra o alcoolismo, fazem seu olhar sobre o mundo transgredir a linha do comum.
Noite no paraíso, assim como Manual da faxineira – que ganhou sua versão no Brasil em 2013 – foi publicado postumamente. Em tons irreverentes e sinceros a sua forma, o texto extrai de pessoas comuns uma individualidade apaixonante. A tradução de Sonia Moreira reafirma os aspectos boleados da linguagem e transfigura as possibilidades alvoroçadas do inglês para o português com excelência.
“Anos depois às vezes você olha para trás e diz que aquele foi o começo de… ou nós estávamos tão felizes na época… antes… depois… Ou você pensa eu vou ficar feliz quando… assim que conseguir… se nós…”
Caso pessoas comuns possam – e podem – protagonizar momentos em que a singularidade encontra o acaso, Berlin constata isso com uma força ímpar. Desde garotinhas vendendo rifas a uma moça visitando pontos turísticos de Paris, tudo tem fundo em rebuliços internos ou externos. A diferenciação entre a obra e a escrita de outros cronistas e contistas é que tudo é construído de maneira suave, como se mesmo o dramático estivesse em completo consentimento com as personalidades plurais.
Muito do contexto social e político compõem as significações desses cenários, como os reflexos da Segunda Guerra Mundial desenrolando-se nos contos em que Lucha é protagonista e vive no Texas. Mesmo que de forma indireta, os elementos conseguem denunciar o contexto histórico nas narrativas sem deixar as datas explícitas. Ao fundo dos enredos centrais, existem pedaços do espaço geográfico e temporal em que as cenas ocorrem enquanto envolvem as interações entre imigrantes, a diferença econômica nos bairros centrais e os reflexos coloniais. Esse aspecto se mostra em detalhes como o programa passando na televisão, os soldados morando nas extremidades da cidade ou as mulheres de chapéu na alta sociedade.
Para além das circunstâncias, preconceitos e discriminação são expostos de forma clara. Isso é feito com total naturalidade, já que os absurdos se inserem com o peso de uma pena caindo de um prédio. Quando aborda essas ocorrências, Lucia sempre trata de introduzir um comentário ácido ou uma atitude desaforada em algum dos sujeitos para desviar ao equilíbrio que mantém a leitura fluida e bem-humorada.
No conto que dá nome ao livro se encontram os contrapontos. Ali, com celebridades na mesa de um bar e discussões acaloradas, as coisas se tornam mais próximas da extravagância. Entre alcoólicos e ilícitos, diversão e melancolia se misturam para expor fragilidades nas figuras de Elizabeth Taylor, Richard Burton e Ava Gardner. O mistério da contradição em afetos e desafetos, fins e recomeços, sobriedade e embriaguez.
Apesar de espelhada nos personagens, Berlin é praticamente a protagonista fixa da coletânea. Sua existência ubíqua controla as margens e linhas acessadas em cada uma das histórias, trazendo para a ponta do lápis o que esteve em sua essência. Sem precisar de linearidade ou ligação entre os contos, a autora faz do pífio um espectro da fascinação: ato de existir modulado por uma unicidade deslumbrante.
“A cidade inteira estava louca pra ver quem era a pobre da trouxa que tinha comprado a casa. Era impossível não ficar com pena dela, apesar de a entrada ter sido só mil dólares. Claro que ela estaria rica agora se tivesse ficado com a propriedade. Qualquer um podia ter dito que a bomba estava nas últimas, avisando dos cupins da fiação. Mas nunca passou pela cabeça de ninguém que me telhado ia desabar. Era um telhado bom a beça.”
A leitura de Noite no paraíso: Mais Contos poderia ser definida como um afago misturado a uma sacada irônica. Quase como aquela amiga que a gente ama, mas sempre tem verdades demais para nos dizer. Aqui isso se amplifica na voz da autora, fazendo da sinceridade um universo particular. Tudo se encaixa de forma cristalina e cria narrativas – que têm fundo autobiográfico ou não – absolutamente reais.
Ler Lucia Berlin é simplesmente literal. Através de palavras muito características, o texto tem a face da escritora: franca e excepcional. Sua consagração pela crítica é tão conveniente quanto um par de patins para duas meninas explorarem caminhos curiosos em 1943. No viés da autenticidade, a contista dizia que o que importa é a história. Sinceramente, vale a pena ser uma observadora desta.