(Alerta de gatilho: O texto a seguir contém discussões sobre tópicos sensíveis abordados no filme, como homofobia, transfobia e ideações suicidas)
Iris Italo Marquezini
“A todas as garotas monstros” é a sensível dedicatória que abre a graphic novel Nimona, vencedora de um Prêmio Eisner em 2016. Essa frase já de cara recepciona e prepara o leitor para o que vai vir: uma história feita para enaltecer pessoas enérgicas que definitivamente não se encaixam. Ao longo dos anos, cada vez mais pessoas foram descobrindo o quadrinho de ND Stevenson e se apaixonando pelo jeito frenético e violento da metamorfa mais pilantra dos últimos anos. A adaptação, lançada pela Netflix, fez a personagem cair no gosto popular de vez e com absoluta razão: é um filme fantástico e mágico em todos os aspectos.
Nimona surgiu como uma webcomic no Tumblr do autor em 2012, contando a história de uma garota metamorfa que decide se tornar comparsa do vilão do reino, Ballister Coração Negro. O ‘malvadão’ não gostou nada da ideia de ter uma menina imprevisível, engraçadinha e que sugere “simplesmente matar os heróis todos de uma vez e explodir tudo” ao lado dele. Diferentemente de Ballister, os leitores imediatamente adoraram a dinâmica ao estilo Megamente da sidekick mais malvada que o vilão.
Dirigido por Troy Quane e Nick Bruno, a adaptação segue o mesmo princípio da obra original e o maior ponto forte é justamente essa amizade inesperada. O gradual intimismo que os comparsas ganham entre si é a fonte dos momentos mais emocionantes e engraçados da trama. As performances de Chloe Grace Moretz e Riz Ahmed como Nimona e Ballister, transmitem todo o atrito e carinho que despertam um no outro em questão de segundos. A dublagem brasileira ficou por conta de Isabela Guarnieri e Rodrigo Andreatto, que deram um tom ainda mais jovial a eles e pareceram se divertir bastante ao brincar com as falas dos anti-heróis.
Embora a química entre Ballister e Nimona e a posição moral complexa deles como supostos vilões dentro da sociedade sejam um ponto forte tanto na graphic novel quanto no filme, as semelhanças com a HQ começam a parar por aqui. No audiovisual, a trama é mais imediatista e urgente, com a trama se iniciando após o herói Ballister (agora chamado de Coração-Valente), que é vindo de uma classe social mais baixa, sendo acusado injustamente de assassinar a rainha. É por causa do atentado que Nimona decide ir atrás do mais novo vilão para se tornar sua parceira.
O design dos personagens encabeçados pelo produtor de design Aidan Sugano brincam brilhantemente com os próprios arquétipos que representam. Os protagonistas possuem roupas bem menos polidas e etéreas que as armaduras douradas e brancas dos cavaleiros da Instituição, uma outra forma encontrada pela narrativa de deixar claro que os principais não são os heróis dessa história. O elenco diverso foi devidamente representado nas aparências, que inclusive se parecem muito com os atores que emprestaram a voz a eles.
Ainda assim, infelizmente, é importante notar que, em relação ao quadrinho, Nimona se apresenta de forma bem mais esguia. Além disso, o braço mecânico de Ballister, perdido no atentado, não desempenha o papel narrativo de discutir o capacitismo da sociedade apresentada na história. Na graphic novel, o ‘vilão’ perde sua vaga na Instituição, organização com papel governamental, logo após o suposto acidente que causou a perda do membro.
O papel do ‘mocinho’ ficou para Ambrosius Ouropelvis (Eugene Lee Yang). O cavaleiro constantemente se encontra em conflito entre os ideais da Instituição e a lealdade a Ballister, antigo interesse amoroso dele. O personagem teve pouco espaço para brilhar na história, mas o faz de forma ora sensível, ora engraçada nos momentos de destaque. A performance de Eugene Lee Yang trouxe uma tridimensionalidade exemplar ao abordar as pressões que pessoas descendentes de leste-asiáticos podem sofrer. A dublagem brasileira de Wirley Contaifer também não deixou a desejar.
Um dos aspectos que mais chamou atenção na obra é o universo medieval e futurista ao mesmo tempo. Vinda diretamente do quadrinho, mas expandida aqui no audiovisual, o visual bebe de diversas estéticas como o steampunk e o cyberpunk. Por meio dessa mescla inteligente, o público consegue ter contato com novas abordagens para mundos fantasiosos. Os cenários da narrativa são vivos e excelentes palcos para o potencial enorme de movimento que uma transmorfa caindo na porrada pode trazer.
Os personagens foram feitos em CGI em 3D, mas com diversas estilizações em 2D, principalmente nos cenários e figurantes. A escolha de se afastar de um fotorrealismo, abraçar as formas geométricas e texturas e iluminação própria, além de fazer homenagem ao estilo original da graphic novel, trouxeram um visual único. O resultado é uma ambientação belíssima visualmente que se assemelha às ilustrações de contos de fadas clássicas repletas de cores chamativas às crianças.
O resultado final do visual chama ainda mais atenção quando comparamos com gravações do projeto enquanto estava nas mãos da Blue Sky Studios, responsável por A Era do Gelo, Rio e Touro Ferdinando. Aparentemente, a obra apostaria em um tom mais fotorrealista em versões antigas do projeto. Essa mudança deixou alguns fãs frustrados com a impressão de que a animação não estava devidamente finalizada. Embora esses aspectos tenham sido, sim, intencionais, essa impressão tem uma origem muito verdadeira, já que de fato, Nimona quase não chegou aos olhos do público.
A produção passou por um balde de água fria durante a produção. O longa chegou a ser cancelado após o estúdio original ser fechado em 2019 pela Disney. Em meio a diversas especulações dos motivos para essa desistência do projeto, que na época estava 75% concluído e deixou 450 pessoas desempregadas, a produtora Annapurna, juntamente com a Netflix, apareceu como ‘salvadora’ e decidiu finalizar o que a antiga dona não teve coragem de fazer.
Em Abril de 2022, os fãs foram agraciados com a notícia do retorno do projeto. Logo de uma vez foi revelada uma primeira imagem que mostrava o estilo da animação e a divulgação do elenco com Moretz e Ahmed. Olhando em retrospecto, fica impossível ignorar a importância que esse cancelamento traz para a mensagem e temas que Nimona apresenta.
Um dos fatores que dá um quê de dinamismo para a trama é a constante perseguição que os principais sofrem. Enquanto Ballister é procurado por ser suspeito no assassinato na rainha, Nimona ganha a fama de perigosa por, na teoria, ser um monstro. Em meio a planos mirabolantes e fugas desajeitadas, os dois vão lentamente se percebendo como forasteiros dentro da sociedade apresentada e se revoltam contra ela.
Mesmo que os protagonistas vejam com empolgação a posição de serem anti-establishment, a animação não ignora as consequências psicológicas que essa postura constante pode trazer. Em um dos momentos mais emocionantes, Nimona relata acreditar que às vezes sente merecer as coisas ruins que desejaram e fizeram a ela. Constantemente o coração dela é partido quando a chamam de por um termo do qual ela odeia: monstro.
Nos cenários, há uma verdadeira caça às bruxas, com pôsteres e mensagens espalhadas dizendo para se ter cuidado com essa criatura. Nimona leva a vida de forma empolgada e travessa, mas os constantes ataques de ódio conseguem fazer a poderosa transmorfa hesitar sobre o direito à própria vida. Não há como ignorar o contexto assustador no qual a obra foi produzida ao longo dos anos e o estado na qual o mundo se encontra agora, meses após sua na estreia.
Os ataques e perdas de direitos da comunidade queer continuam a ser temas bastante reais nos Estados Unidos – e no Brasil não é diferente. A vulnerabilidade e pressão sentida por Nimona é bastante real para pessoas LGBTQAI+ ao redor do mundo todo. Ela está longe de ser um modelo a ser seguido, mas os medos e ansiedades que vive possuem um caráter universal àqueles que ainda recebem qualquer sinal de aceitação sempre com um pé atrás.
A metáfora que envolve personagens metamorfos para representar pessoas trans é um tanto polêmica e passível de envelhecer mal. Existe um potencial bastante promissor na ideia de um ser não ter uma forma definida e se expressar como bem entender quando quiser. Acontece que esse mesmo conceito pode mostrar como é literalmente mais fácil criar uma nova espécie para representar esse público do que desafiar as definições de gênero dentro do próprio conceito de humanidade.
Nimona, querendo ou não, faz parte desse clichê e não esconde a própria posição com sutileza alguma. A história, desde os primeiros minutos mostrando o romance de Ballister e Ambrosius, declara-se intrinsecamente e abertamente queer para a audiência. Embora a relação entre os dois seja tratada com naturalidade e com obstáculos para o casal sem o envolvimento de homofobia, como acontece em Arcane, a condição de Nimona ainda é cercada de sofrimento.
Ainda assim, é importante reconhecer que, nesse processo, a narrativa demonstra como propagandas falsamente infundadas causam a desnecessária e cruel deterioração mental de pessoas trans na vida real que, em todo canto que olham, observam alguém as chamando de monstros. O longa acerta na abordagem a partir do momento que entende que não é a característica de ser trans que acarreta o sofrimento, mas, sim, uma sociedade estruturada em mentiras e opressões.
A trama possui diversos dos clichês que Hollywood trabalhou diversas vezes sobre ‘abraçar a diferença’. Acontece que a abordagem de se utilizar de cada um deles sob uma lente queer realmente torna a história da obra assustadora para a Disney. Não é de hoje que o estúdio se recusa a dar um arco genuinamente sensível e desenvolvido a um personagem LGBTQAI+. Mesmo sem o beijo, a narrativa já seria em si ousada por abordar a experiência na comunidade de forma realista e, principalmente, divertida.
O objetivo da trama parece mais se aprofundar nas discussões que cercam esses contextos do que simplesmente se afastar deles ou torná-los uma piada. Pelo contrário, o filme, se não busca tocar na ferida, ao menos tenta celebrar a vivência LGBTQIA+. O ápice acontece justamente em um momento de aceitação entre Ballister e Nimona, um ato que faz aquele mundo virar de ponta cabeça a partir da recusa de simplesmente não se odiar.
As mensagens sobre união, amor e perseguição às pessoas LGBTQ+ já existiam no quadrinho, mas a adaptação consegue expandir esses temas de forma mais que necessária. O material original é ótimo, sim. Todavia, saber que a versão audiovisual foi diretamente envolvida pelo próprio processo de auto-descoberta e amadurecimento do autor ND Stevenson ao longo dos anos tornou tudo maior e ainda mais relevante. Nimona, apesar de todas as tentativas de censura e adversidades, conseguiu resistir e contar uma história que traz conforto ao coração.
Mesmo que abertamente contra a Instituição apresentada na história, o longa se limita ao não apresentar nos minutos finais um choque tão grande em relação ao que foi estabelecido antes. Os cavaleiros, vindos de uma classe elitista e violenta com os diferentes, continuam a agir na sociedade. Os civis, vítimas das diversas atrocidades cometidas ao longo da narrativa, parecem continuar a viver em classes mais baixas. Não que Nimona precisasse expandir uma lore política que nem mesmo Senhor dos Anéis fez, mas é frustrante assistir uma história que desafia tantas convenções sociais ficar tímido na hora de imaginar uma utopia.
Nimona sem dúvidas se destaca como uma das animações mais únicas, inventivas e divertidas de 2023. As dificuldades do lançamento marcam mais um exemplo do fenômeno perigoso absurdamente contra animações infantis com um olhar humano e autoral acerca de pessoas LGBTQ+. Irônico, já que o filme ganhou o reconhecimento de ser indicado ao Oscar 2024 na categoria de Melhor Animação, dividindo o espaço com obras como Homem-Aranha: Através do Aranha-Verso e O Menino e Garça.
Além de disponibilizar o livro de 358 páginas dos bastidores e artes conceituais, a Netflix fez a fantástica ação de publicar gratuitamente Nimona na íntegra no canal oficial do YouTube semanas antes da cerimônia. Os diretores afirmaram ser um dos melhores anos para as animações, elogiando com razão a diversidade proposta em várias das obras indicadas. Não há motivo para pensar que Nimona não mereceria estar entre essas produções: o filme é disruptivo, tanto na narrativa quanto estilísticamente, características de que clássicos são feitos.
É gratificante perceber o quão necessário é a produção estar, finalmente, entre os melhores do ano. Não se trata apenas de mais uma história de superação de bastidores turbulentos: assim como Nimona não precisava sofrer tanto para ser aceita depois, a adaptação jamais precisou dessa insegurança toda no lançamento para ser reconhecida. Uma animação bela como essa serve de lição para os estúdios nos próximos anos não hesitarem em contar histórias como a proposta por ND Stevenson. Não porque essas narrativas compensam financeiramente, mas por tocarem as pessoas sinceramente e radicalmente.
Nimona merece o mesmo louvor que a graphic novel recebeu em 2015, com o Eisner, pela crítica anárquica a um sistema opressor e a demonstração do quão vital e linda a experiência de uma pessoa da comunidade pode ser. Mesmo com tropeços aqui e ali, o filme nos mostra a certeza de que sempre é possível se transmorfosear em algo melhor.