Ana Júlia Trevisan
O nome dela é Gal, nasceu na Barra Avenida, Bahia, acredita em Deus, gosta de baile e cinema. Admira Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Paulinho da Viola, Rogério Duprat. E, comemorando seus 75 anos, mostrou que também admira Rodrigo Amarante, Zeca Veloso, Seu Jorge, Zé Ibarra, Jorge Drexler, Rubel, Tim Bernardes, Criolo, António Zambujo e Silva. Dando continuidade ao projeto intitulado Gal 75, que se iniciou com uma live em setembro no dia do aniversário da cantora e, agora, oficialmente recebeu o nome de Nenhuma Dor. Gal Costa convidou nomes da MPB que não fazem parte de sua geração para duetos apaixonantes de grandes clássicos de sua obra.
Lançado em CD e vinil, o projeto desde muito cedo tem a preocupação com sua estética. A parceria, para esse trabalho em específico, entre Gal Costa e Marcus Preto, diretor artístico e fiel escudeiro, começou após uma ligação da cantora que percebeu a adesão de jovens aos trabalhos de grandes ícones da música nacional nesse tempo de pandemia. “Você não acha que a música cura?” Foi a partir dessa pergunta que nasceram os 10 singles com capas brancas pintadas em aquarela remetendo a Aquarela do Brasil (clássico nacional interpretada por Gal) e ao vinil vermelho translúcido. Afinal, batom vermelho sempre foi uma de suas marcas.
O CD original ganhou ordem das faixas diferente do lançamento dos singles, o que qualificou ainda mais a sonoridade do trabalho, entretanto Gal manteve como abertura Avarandado. A música feita por Caetano Veloso está presente no álbum de estreia da dupla, Domingo. Rodrigo Amarante, integrante do Los Hermanos, dominou a faixa fazendo com perfeição voz, violão, baixo, bandolim, piano, percussão e arranjo de base. Avarandado não foi a única composição de Caetano presente no Gal 75, uma vez que ele tem a honra de ser o compositor que ela mais interpretou canções, provando a afinidade desse duo transcendente a música.
Só Louco de Dorival Caymmi, outro grande compositor sempre magnificamente eternizado por Gal e a quem ela já dedicou um álbum de estúdio inteira e exclusivamente às suas composições, é a segunda canção do disco e foi a última a chegar nas plataformas de streaming. O dueto mais aguardado é entre ela e Silva, um dos maiores representantes da nova geração. A suavidade impressa na canção traz o sentimento de paz através da percussão e a parceria deixa um gosto doce na boca.
Composta por Milton Nascimento junto a Caetano Veloso e sempre relembrada pelos amantes da MPB, Paula e Bebeto traz a importante mensagem que “qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar”. Não poderia haver voz melhor para regravar essa música a não ser a de Criolo. O engajamento sócio-político do cantor contrasta com tudo aquilo que Gal já posicionou em seus 55 anos de carreira e seu inebriante vocal, sempre capaz de transpassar profundas sensações, combinado a um instrumental moderno é um grande acerto sentimental para o disco.
O belíssimo instrumental de Paula e Bebeto feito por Felipe Pacheco Ventura, que assina a produção do disco, aparece ainda mais marcante em Pois É, tornando a nova versão melhor que a gravação original. Cantada junto com o português António Zambujo, os violinos, violas e arranjos de Felipe trazem uma riqueza melódica para a canção. Essa não é a única música a contar com uma participação gringa. Negro Amor, que é de longe uma das minhas favoritas da discografia de Gal Costa, contou com a voz do uruguaio Jorge Dexler, concebendo, assim, um magnifico casamento vocal, facilmente escutado por horas e horas sem parar.
Meu Bem, Meu Mal é uma das gravações mais conhecidas do repertório de Gal por sua letra fácil, romântica e com um sedutor jogo de palavras. A nova versão ganha a voz e o piano de Zé Ibarra. O jogo de vozes dos cantores e as alternâncias entre graves e agudos combinam com composição. De forma apaixonante, o poder da voz do cantor não nega a influência que a mãe de todas as vozes teve em sua carreira, deixando o desejo de escutar mais músicas eternizadas por Gal sendo cantadas por Ibarra.
Gal Costa sempre mostrou muito carinho e respeito por Luiz Melodia e não poderia faltar uma de suas composições nesse marcante projeto. A música escolhida foi Juventude Transviada, gravada no imortal Gal Tropical, e que agora teve a participação de Seu Jorge. Simplesmente não havia ninguém mais perfeito para interpretar a canção de Melodia do que o compositor de Burguesinha. A entrada dele na canção nos faz lembrar de quando Melodia cantou essa música ao lado de Cássia Eller. Além disso, o casamento entre as duas vozes torna essa versão eterna. A releitura consegue ser mais inesquecível que a original, graças à dupla.
Coração Vagabundo entra para o fantástico tópico: parcerias entre Gal Costa e Rubel. Iniciada com Baby (que foi lançada em meados de 2020), dessa vez Rubel se mostra mais à vontade em dividir o microfone para interpretar a canção quase sempre presente nos trabalhos de Gal e Caetano. Na gravação anterior, enquanto a cantora estava solta, ele parecia contido. Agora, em Coração Vagabundo, ambos se mostram na mesma página para protagonizar o duo. Gal Costa também exterioriza a maturidade de quem tem uma carreira de mais de meio século.
Se, na gravação de Baby com Rubel, o cantor pareceu acanhado em gravar, para a versão de Nenhuma Dor, Tim Bernardes se revela pronto para reler essa canção ao lado da cantora. A relação de respeito existente entre Tim e Gal nos deixa ainda mais ansiosos para ver a dupla em ação. E eles conseguiram entregar agudos impecáveis, com Gal Costa reafirmando, no auge dos seus 75 anos, o que é ser uma das maiores vozes do país. Esse delicioso dueto está no meu No Repeat do Spotify desde seu lançamento como single em janeiro.
Aos fãs de Caetano Veloso, a voz inconfundível de Zeca Veloso ficou marcada na memória após cantar de maneira única Todo Homem no projeto Ofertório. Junto a Gal, ele canta Nenhuma Dor, canção que batizou a celebração dos 75 anos. Os arranjos de violão criados pelo próprio Zeca, trazem a mesma poética melodia da primeira gravação, com tom intimista e o violão joão gilbertiano. E, apesar das semelhanças, Zeca consegue algo novo e delicado, registrando sua assinatura na canção que faz parte da obra de seu pai.
Gal responde à pergunta que deu início a Nenhuma Dor: sua música cura. Você já foi fatal, sagrada, profana, plural, estratosférica, divina, maravilhosa e nunca deixou de se mostrar atenta e forte, e mais do que nunca vivemos tempos em que precisamos ser fortes. Seu trabalho em conjunto com a nova geração apenas reafirma a grandiosidade da sua arte, e o espaço cedido para que esses cantores fizessem seus arranjos codifica a humildade de quem traçou uma das maiores carreiras da música popular brasileira. Nenhuma Dor é a luz no fim do túnel que tanto esperávamos. Obrigada!