Guilherme Veiga
Nos mais de 120 anos do Cinema, é natural que, uma hora ou outra, ideias se esgotem, seja pela saturação ou pelas fórmulas estabelecidas. É a partir daí que os gêneros nascem, com o intuito de guardar em caixas histórias que têm algo em comum. Filmes de ação, geralmente, são construídos sob a sombra dos brucutus com armas nas mãos, contra tudo e contra todos; romances, em sua maioria, são melodramáticos; biografias, quase sempre, endeusam os biografados; aventuras abusam da jornada do herói, e por aí vai. Em uma Arte tão vasta, o difícil é sair da homogeneidade.
Talvez o gênero que encontre mais dificuldade para escapar do ‘mais do mesmo’ seja o de sci-fi com extraterrestres. Muito porque, antes mesmo dele chegar de vez no Cinema, o tema já estava amplamente estabelecido na cultura popular, principalmente a norte-americana. Quando chegou às telas, o subgênero já vinha como um ponto fora da curva, a exemplo de Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Marte Ataca! (1996), Alien: O Oitavo Passageiro (1979), E.T. O Extraterrestre (1982), Sinais (2002) ou, até mesmo, o recente Distrito 9 (2009). Essa seara que, graças a originalidade, criou seu próprio conceito, merecia ser retrabalhada por uma das mentes mais originais da atualidade, e é isso que Jordan Peele busca com Nope, ou, aqui no Brasil, Não! Não Olhe!.
A história gira em torno de um rancho que cria cavalos para serem usados na indústria do entretenimento, seja em filmes, clipes ou peças publicitárias. Após a morte do patriarca da família, depois de ser atingido por uma moeda que, misteriosamente, é arremessada do céu, seus filhos descobrem que aquele entorno do deserto rural californiano é habitado por um OVNI. Trata-se de uma premissa bem blockbuster spielbergiana, quase que um encontro entre Peele e Steven Spielberg, e de fato esse talvez seja o filme mais comercialmente aclamado da curta filmografia do diretor. Porém, com o cineasta sendo um dos mais famosos expoentes do simbolismo e da crítica social, Nope é muito mais do que isso.
Carregado de símbolos, Não! Não Olhe! é uma crítica à indústria, estando ele inserido nela. O diretor e roteirista abusa da sociedade do espetáculo para além daquela base teórica, pois aqui, de certa forma, quebra a quarta parede para analisá-la dos dois lados, e mesmo indo para o lado dos blockbusters, também rompe com eles. Esse tipo de narrativa (mal) acostumou o espectador a ter todas as respostas, mas o filme não está nem um pouco preocupado em ser explicativo. Isso faz com que a obra seja a mais divisiva de Peele, visto que funciona de forma muito coesa como conjunto de simbolismos, mas não consegue os amarrar à trama, algo que Corra! (2017) conseguiu. Dessa forma, a experiência, para ser melhor aproveitada, precisa sair das telas, numa espécie de paranoia conspiratória típica da temática.
É em Nope que, nesse extenso amálgama de conceitos, Jordan Peele mais brinca e está livre, ao destrinchar essas interpretações em várias vertentes. Isso é um prato cheio para o mercado de finais explicados do YouTube e faz com que o debate seja tão vasto como o universo inexplorado. Por essa razão, cada um que assiste o longa pode tirar suas próprias conclusões, em um cenário de diálogo cada vez mais escasso em uma Hollywood enlatada, fazendo com que tal conjuntura seja extremamente benéfica para o próprio Cinema.
Contudo, as várias interpretações apontam para um mesmo céu: o entretenimento é a nova forma de opressão de minorias, o que faz com que essa violência vire um produto da sociedade capitalista, mas Peele não deixa de inserir a crítica racial na trama. Assim como Us (Nós, 2019), a obra também se inicia com uma passagem bíblica; dessa vez, Naum 3:6: “Eu jogarei imundice sobre você, a tratarei com desprezo e te tornarei um espetáculo”. Impossível não notar que a frase é essencialmente um resumo de Hollywood e da indústria do entretenimento – basta lembrar a relação de Britney Spears com os paparazzis, ou como os magnatas do Cinema trataram Brendan Fraser -, além de ser, basicamente, todo o plot da obra.
Na cena do massacre do chimpanzé Gordy, toda a situação é esquecida pelo jovem ator do seriado noventista a partir do momento em que, sobrenaturalmente, o sapato para em pé, evidenciando como ficamos cegos para a barbárie que é a sociedade quando estamos comandados pelo instinto da curiosidade. Negamos o quão brutal foi uma tragédia a partir do momento que procuramos imagens dela. As próprias aparências do ‘OVNI’ retornam a essas formas de repressão. Primeiramente, ele lembra um chapéu de cowboy, que oprimiu o povo nativo daquela região e, em seguida, seu aparelho digestivo remete justamente a uma câmera de cinema.
Mas não pense que Jordan Peele é hipócrita em sua crítica. Pelo contrário: ele usa a obra como um todo para fazer um mea culpa do filme. Nope é dividido em cinco capítulos: Ghost, Clover, Gordy, Lucky e Jean Jacket. Três deles são os nomes dos cavalos oferecidos à ameaça, seguido pelo nome do chimpanzé morto após o surto; o último é o apelido que os personagens dão ao monstro, ou seja, cinco produtos que foram comidos e cuspidos por algum predador, seja ele literal ou metafórico. A questão é que todas essas cinco divisões são feitas nos mesmos moldes que o letreiro inicial do longa, colocando ele mesmo como esse primeiro produto.
Porém, a obra é muito mais que suas discussões, considerando que ela não viria tão forte se não fosse bem estruturada. O grande chamariz é o roteiro de Jordan Peele. Além de ambientar o subtexto de forma muito coesa, ele é certeiro ao subverter o gênero. O plot twist – que gira em torno da nave espacial não ter nenhum alien, mas, ela sim, ser o próprio alien –, além de ser inteligente por quebrar a expectativa apontando para um ponto micro e desconhecido quando, na verdade, ela já está no macro e não a percebemos (pois fomos condicionados a pensar do jeito que o filme quer que pensemos), coloca a obra em um pedestal único quando se fala nessa seara de histórias. O mais surpreendente é que todos esses pontos são tocados através de um roteiro simples, mas extremamente bem pensado.
Tal escrita só poderia ser regida da forma certa com uma boa direção. Aqui, a decisão de Peele de só ter em sua filmografia filmes nos quais ele também escreve se prova, apesar de conservadora, extremamente acertada. Ele sabe conduzir cenas de suspense como ninguém e, na ambientação, até o marasmo do céu se torna assustador nas mãos dele, cujos aspectos técnicos convergem na criação de mundo. O design de som de Johnnie Burn é impecável e consegue amplificar a ameaça do monstro sem abusar de rugidos, somente com o silêncio e o som do vento. Já a fotografia de Hoyte van Hoytema, aliada com o design de produção de Ruth De Jong e o figurino de Alex Bovaird, criam uma atmosfera única e colorida, que às vezes parece até fantástica para o monocromático deserto.
O elenco também faz jus ao texto. Ele foi tão bem desenvolvido que apenas cinco personagens conseguem carregar as duas horas do longa sem cansar. Daniel Kaluuya e Steven Yeun repetem a parceria com Peele, o primeiro pelo excelente Corra! (2017) e o segundo pelo remake de Além da Imaginação (2019). Kaluuya mais uma vez entrega uma atuação primorosa, que vai crescendo com o passar do filme, e Yeun entende que seu papel é bagunçar a trama e faz isso de forma muito consciente. Mas quem rouba a cena é Keke Palmer (Lightyear) com a expansiva e comunicativa Emerald, que chama todos os holofotes para si e dá conta do recado. São adicionados a eles, também, Brandon Perea (The OA), que funciona como um alívio cômico muito pontual, e Michael Wincott (O Escafandro e a Borboleta), com sua presença em cena inconfundível.
Extremamente bem pensado, inteligente, audacioso e subversivo, Não! Não Olhe! é a empreitada mais original do Terror, no ano em que o gênero se provou com muita originalidade. A obra sabe trabalhar com o desconhecido no momento em que ela evidencia que tal desconhecido vai muito além do que conhecemos. Jordan Peele entende o papel do Cinema ao fazer com que a experiência cinematográfica ultrapasse as telas, sem a presunção e pedância de um ‘filme para refletir’, pois coloca o espectador para pensar – e essa talvez seja a parte mais empolgante da jornada – sem abrir mão da diversão que é assistir ao longa.
Talvez Nope não seja tão grandioso quanto os projetos anteriores de seu idealizador e isso também vale discussões, mas não por seus deméritos, e sim pelo diretor ser um viciado em acertar. Num futuro, ele pode cair na própria crítica e ser consumido e cuspido pela indústria, mas esquecido? Jamais. Pois essa pequena e significativa constelação da qual Peele construiu sua história nas telas sempre irá brilhar no Cinema.