Giovanna Freisinger
Efervescente, colorido e quente, Motel Destino propõe um noir no calor do Ceará. O novo longa do diretor Karim Aïnouz chega aos cinemas após celebrada estreia no Festival de Cannes, onde concorreu à Palma de Ouro. Aïnouz repete a parceria com a diretora de Fotografia francesa Hélène Louvart, que também trabalhou ao seu lado em A Vida Invisível. É o olhar dela que define o tom da história, através das cores saturadas e texturas granuladas que levam ao visual frenético.
Na beira da estrada, o motel é o personagem principal. Sob as luzes neon, ele respira, pulsa, fala, geme e dita as regras. Do portão para dentro, os protagonistas se entregam ao prazer e ao instinto. O suor que cai sobre os lençóis emaranhados do Motel Destino é de calor, desejo e tensão, e todos se misturam. Há um magnetismo perigoso ali dentro, Karim Aïnouz definiu o local como “um vórtex do inconsciente”, que engole e prende quem entra, durante coletiva de imprensa em que o Persona esteve presente.
Se nos quartos é onde as fantasias têm lugar, nos corredores de manutenção acontece a vida que ninguém vê. Conforme a narrativa progride, o ambiente compõe o cenário de um pesadelo, como se as paredes se estreitassem a cada minuto ao passo que as tensões vão chegando mais perto do ponto de ebulição. As cores, a luz, a música e toda a composição levam a intensidade ao máximo e te fazem pensar: qual foi, um dia, a graça de um noir sem calor e sem suor? Como já aceitamos, no passado, qualquer demonstração do relacionamento dos personagens que não era coreografada ao som de “Pega o Guanabara e vem”?
A história é clássica, pode-se dizer que já está batida, mas a execução única garante uma experiência deliciosa na audiência. Nesse caso, a forma salva o conteúdo. O potencial criado pela obra comportava mais ambição do que o enredo, escrito por Aïnouz em parceria com Wislan Esmeraldo e Mauricio Zacharias, entrega. Por maior que seja a contradição com as ideias do filme, ele é engessado, e depende do seu jogo de cintura para não cair em mais do mesmo que já vimos antes.
O filme provoca: o que acontece quando os arquétipos da sociedade brasileira se encontram entre quatro paredes? Iago Xavier tem seu papel de estreia interpretando Heraldo, um jovem desprivilegiado que vive em fuga. Já Nataly Rocha merece destaque por sua performance intensa de uma mulher bem resolvida consigo mesma, porém presa em um relacionamento abusivo com o personagem de Fábio Assunção, que incorpora um ex-policial sudestino em toda a sua glória; bigodudo, bêbado, agressivo e sem noção.
A inserção dessa tríade no universo do filme tece comentários interessantes sobre as dinâmicas de poder que estão em jogo e a extensão da moralidade ambígua de cada um. Todos os personagens estão tentando escapar do destino que espreita. Eles se reconhecem no primeiro olhar, sabem imediatamente quem o outro é, e seguem em um jogo de provocações fingindo desconhecer as intenções por baixo dos panos. Heraldo e Dayana (personagem de Rocha) constroem a relação central do filme, baseada, principalmente, no encontro da busca comum por uma liberdade da qual são privados.
O sexo em Motel Destino não é coberto por qualquer véu do pudor, muito pelo contrário, é nu (literalmente) e cru, o que permite que a audiência e os personagens entre si conheçam exatamente quem eles são, despidos de tudo que usam de fachada. É uma história física, os corpos – como a câmera de Aïnouz os revela – comunicam tanto quanto, senão mais que, o texto do roteiro.
Em resposta ao Persona, durante a coletiva realizada no Reag Belas Artes, o diretor compartilhou que faz passagens em silêncio durante as gravações, removendo por completo o diálogo das cenas. Contou também que pegou a ideia de uma entrevista do David Fincher: “Obviamente os planos que mais ficam no filme são essas passagens. As trocas de olhares e a sinergia dos corpos no espaço são muito fortes.” Ele ressaltou ainda que, nesse filme, foi muito importante que “os corpos estivessem à frente da palavra”.
O trio protagonista passa quase o tempo todo junto em um ambiente claustrofóbico. Eles se esbarram, agarram, seguram, evitam, empurram, dançam e parecem estar sempre a um movimento brusco de tudo escalar rapidamente. A faísca da violência iminente pode acender com qualquer passo errado nos jogos de insinuação e intenções implícitas entre o motel e a liberdade. O hedonismo desenfreado cobra um preço e Motel Destino faz a audiência pagar com gosto.