Nathan Nunes
Vinte anos distanciam o atual estado da sociedade do lançamento de Minority Report: A Nova Lei no longínquo ano de 2002. Já em comparação com o futuro retratado no filme de Steven Spielberg, são trinta e dois anos de separação. Seja olhando para frente ou para trás na linha do tempo, é interessante notar que essa obra, como toda boa ficção científica, é cada vez mais parecida com a realidade, em níveis bastante alarmantes e assustadores.
Baseado no conto de mesmo nome escrito pelo renomado autor Philip K. Dick, o longa se passa em 2054, em que um protótipo de polícia chamado Pré-Crime está em vigor. Esse programa se sustenta com base nos Pré-Cogs, três irmãos capazes de visualizar previamente os crimes, o que permite que os policiais prendam os supostos criminosos antes que eles cheguem a cometê-los. Nesse contexto, acompanhamos o oficial de comando John Anderton (Tom Cruise), um homem amargurado pelo desaparecimento de seu filho anos antes. Quando um assassinato é visualizado envolvendo Anderton como o responsável, ele se torna um alvo e parte para fuga na intenção de sobreviver e desvendar o mistério que cerca seu destino.
Há diversos paralelos a serem feitos entre Minority Report e a sociedade atual, mas os principais seguem uma mesma linha: a crítica às instituições. De início, temos evidentemente o retrato crítico da polícia enquanto uma instituição que atua como juiz, júri e executor, como comprovam os constantes casos de violência policial no Brasil e no mundo. Além disso, existe também a noção da tecnologia aliada ao serviço policial em si, como podemos ver no recente exemplo do uso de câmeras nos uniformes policiais adotado no estado de São Paulo.
Outra instituição que não sai passível de críticas no filme, mesmo que de forma mais metafórica, é a religião. Na realidade mostrada aqui, os Pré-Cogs são endeusados como seres divinos que vieram ao mundo para nos libertar da violência, algo que é realçado na maneira como as pessoas se ajoelham e fazem sinal de cruz diante de uma deles em determinado momento da trama.
Porém, no seguimento do filme, como apontado pelo personagem Danny Witwer (Colin Farrell), quem realmente detém e controla o poder de figuras endeusadas são os sacerdotes. Nesse sentido, os policiais do Pré-Crime operam quase como os padres de uma igreja, mantendo as engrenagens da instituição em movimento, independente dos valores éticos e morais.
Contudo, pensando de um ponto de vista mais material, Minority Report também se assemelha ao presente no seu retrato da tecnologia customizada. Vemos isso nos anúncios de roupas, serviços, produtos personalizados e na necessidade que os personagens têm de se identificarem virtualmente através do escaneamento das íris de seus olhos.
Esse retrato é complementado pelo design de produção de Alex McDowell (O Homem de Aço, A Fantástica Fábrica de Chocolate) e os figurinos de Deborah L. Scott (Avatar, Titanic), que não se distanciam tanto da realidade: a Washington de 2054 parece realmente a cidade de Washington daqui 30 anos. Seguindo a proposta do filme, o trabalho de ambos não se esquece da inventividade característica da ficção científica, como máquinas de extração ocular, robôs que parecem baratas, cassetetes que estimulam o vômito e por aí vai.
Enquanto Cinema, Minority Report nos mostra um Spielberg soberbo e excepcional em sua mise-en-scene, como de costume. Trabalhando pela primeira – e por enquanto única – vez com o gênero noir, o diretor consegue transmitir toda a angústia e mistério da narrativa em sua câmera tradicionalmente dinâmica e inquieta. Esse efeito é potencializado pela espetacular direção de fotografia de Janusz Kaminski, que retrata esse mundo misturando tons azulados e esbranquiçados, etéreos com as sombras mais fortes e granuladas da película, num sentimento de pessimismo e anestesia muito condizente com os dos personagens aqui.
No que tange à ação, o filme nos brinda com sequências espetaculares que se utilizam dos aspectos técnicos em seu nível máximo de qualidade. São momentos como os da fuga de Anderton em meio ao trânsito magnetizado de Washington ou o da perseguição ao protagonista que começa em um beco e termina em uma fábrica de carros (com direito a uma pistola de pulsos magnéticos no meio). Ou até mesmo o da excepcional primeira operação dos policiais, em que percebemos o empenho dos dublês, a pegada pulsante da trilha de John Williams, a intensidade da montagem de Michael Kahn, a inventividade do design de som indicado ao Oscar de Gary Rydstrom e Richard Hymns e, claro, a excelência dos efeitos visuais da empresa ILM.
Já no elenco, temos um dos melhores e mais subestimados papéis da carreira de Tom Cruise – que poderia cair facilmente na mesma pegada de todos os seus outros protagonistas de ação, se não fosse a sua profundidade. Aqui, Cruise trabalha balanceando brutalidade, desorientação, descontrole e, acima de tudo, melancolia, de forma brilhante, chegando ao clímax emocionalmente chocante e catártico para Anderton, em que o herói se depara com o suposto assassino de seu filho e é forçado a escolher entre cumprir a premonição dos Pré-Cogs ou tomar um rumo diferente por vontade própria.
O nêmesis de Anderton, Witwer, é interpretado com uma ambiguidade moral muito interessante por parte de Colin Farrell, enquanto seu mentor Lamar Burgess é agraciado com um ótimo desempenho do saudoso Max Von Sydow, envolto em uma rigidez e uma fala passivo-agressiva muito condizentes com a sua natureza surpreendente. Já Samantha Morton, mesmo com pouco tempo de tela comparada aos outros coadjuvantes, chama atenção na composição frágil e enigmática de Agatha, uma das três Pré-Cogs responsável pela premonição que incrimina John.
No final das contas, Minority Report representa o melhor que a ficção científica tem a oferecer: reflexões sobre a nossa condição contemporânea enquanto sociedade a partir da especulação do futuro. K. Dick, o homem que ousou sonhar com ovelhas elétricas, deu origem a base de discussões éticas que os roteiristas Scott Frank e Jon Cohen aprofundaram na adaptação do texto para o cinema. O trabalho no qual Spielberg, Cruise e todos os outros profissionais envolvidos maximizaram através de seus níveis ímpares de competência. O resultado final foi um filme que, vinte anos depois de seu lançamento original, continua muito relevante, além de uma grande, pura e simples experiência cinematográfica.