Comédia de sucesso estrelada por Mônica Martelli e Paulo Gustavo é uma bagunça em muito sentidos, mas dá para tirar algumas reflexões desse caos
Lucas Marques
Foi daquelas sessões tão lotadas que o funcionário não checou comida de terceiros ou carteirinha de estudante. Na sala, o rapaz do meu lado comia um Big Tasty (o cheiro é inconfundível); na minha frente tentavam encaixar uma copo de 700ml na cadeira. Esses são alguns dos mais de 2 milhões de espectadores de “Minha Vida em Marte”, mais um sucesso comercial estrelado por Paulo Gustavo. Uma experiência cinematográfica coletiva por excelência.
Vale já complementar: também uma experiência caótica, da qual advém as piores e melhores qualidades do filme.
Sequência de “Os Homens São de Marte…e É pra Lá que Eu Vou” (2014), o longa acompanha as aventuras da produtora de eventos Fernanda (Mônica Martelli) para salvar o casamento morno com Tom (Marcos Palmeira). Sempre em dupla com seu sócio de trabalho, o divertido e solteirão Aníbal (Paulo Gustavo).
Tal premissa comum em comédias românticas matrimoniais é explorada de forma caótica em “Minha Vida em Marte”. Este primeiro caos, o que prevalece e o mais importante, é a razão do filme ser ruim: a ausência de unidade tanto na estrutura (a narrativa e a disposição das cenas) quanto nas motivações e características das personagens.
A predileção em criar situações para comédia do que desenvolver uma linha narrativa sólida não é em si um defeito. O problema é que a efemeridade das cenas implica aqui uma esquizofrenia de motivações e características das personagens. Primeiro é Fernanda que não sente tesão pelo marido, depois é a vez dele. Esses e outros cenários parecem mais tapa-buracos para o prosseguimento da trama do que esquetes propriamente engraçadas.
O outro aspecto caótico do filme é um tanto mais complexo. Sem querer, cria um universo dionisíaco, construído especificamente para Fernanda e Aníbal desfrutarem. Ambos formam uma dupla tão imoral quanto os Bad Boys de Will Smith e Martin Lawrence: no decorrer da obra, eles fazem piadas sobre/para velhinhos na iminência da morte e zombam de um anão e do peso de uma mulher. Além disso, tomam como virtude a futilidade e um posicionamento anti-arte (a piada que mais riram na sessão tem relação a isso).
Mesmo assim, eles não só são os heróis de suas vidas, mas também as únicas pessoas “vivas” em um universo mecânico. Como se todos as outras personagens existissem para atender as vontades, mesmo inconscientes, dos protagonistas. Enquanto a dupla é espontânea – em muitos momentos são os próprios Paulo Gustavo e Mônica Martelli -, os outros têm falas robóticas ou são apenas corpos para o prazer dos dois. Esses robôs não partilham das piadas e ignoram os altos cochichos da dupla, apenas para entregar a próxima frase pré-programada.
O universo do filme parece um videogame, no qual os únicos jogadores são Fernanda e Aníbal. Todo o resto, que está lá para disposição deles, não sabe lidar com comportamentos espontâneos.
Não é porque um filme é ruim que não há material para pensar. Pelo contrário, casos como “Minha Vida em Marte” têm ainda mais. Uma dessas questões é entender o sucesso da obra. Paulo Gustavo? Talvez. O comediante é uma força como poucas no cinema nacional. E não acredite que você não dará risadas, porque vai. Ainda é mágico ver o cinema tão cheio e interagindo com as projeções.
O escapismo poderia ser outro motivo do êxito do filme? Também. A realidade socioeconômica das personagens representa uma parcela ínfima dos brasileiros, até por isso pode levar tanto um descolamento quanto uma projeção por parte do público.
O irônico é que nossa condição terceiromundista é evidenciada nas cenas de Nova York, sempre presentes nos materiais de divulgação: mesmo a poderosa Globo Filmes é pouco lá fora, tendo de gravar sem figurantes, com transeuntes encarando a câmera. Procedimento de cineastas brasileiros independentes, como Rogério Sganzerla. O mundo dá voltas.
Em filmes como “Minha Vida em Marte” a máxima atribuída a Paulo Emílio Sales Gomes vem à tona: “Até o pior filme brasileiro nos diz mais que o melhor filme estrangeiro”. Você pode não gostar ou achar que “Arábia” (2018) merecia o mesmo espaço, mas há algo de importante quando tantas pessoas se reúnem para assistir a um filme de Paulo Gustavo. O filme é pior do que Vingadores, mas nos diz mais como brasileiros.